Palestina (1947–2022) — 75 anos de Direito Internacional | por Carlos Matos Gomes

29 de Novembro, o Dia Internacional da Solidariedade com o Povo Palestino, é uma data comemorativa, instituída pelas Nações Unidas, para lembrar o aniversário da Resolução 181 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 29 de novembro de 1947, que aprovou, sem consulta aos habitantes locais, o Plano de Partição da Palestina. O Plano consistia na divisão da área do Mandato Britânico da Palestina em dois estados: um estado judeu e outro um estado árabe.

O Estado judeu (o primeiro estado teocrático, que contrariava a Declaração dos Direitos Humanos da própria ONU, que declara a inadmissibilidade de discriminação racial e religiosa) foi imediatamente constituído, iniciando os recém chegados judeus vindos de todas as partes do mundo e as suas organizações armadas de imediato a expulsão violenta dos habitantes locais, palestinos, das suas casas. O Estado árabe, que não era árabe, mas palestino, nunca foi constituído. Setenta e cinco anos após a Declaração da ONU, esta é letra morta e letra de mortes, de milhares de mortes.

Tive a honra de ser convidado pelo MPPM — o Movimento para a Paz e a Palestina Livre — para fazer o discurso de evocação desta data de exposição da sangrenta hipocrisia do que é invocado como o Direito Internacional, numa cerimónia realizada na Casa do Alentejo e com a presença do embaixador da Autoridade Palestiniana, a entidade que representa o que deveria ser o Estado Palestino e dotado de idêntica dignidade do embaixador do Estado de Israel.

Deixo aqui alguns dos pontos que referi na minha comunicação e que representam o que penso.

A situação da Palestina, do povo palestino, é um crime continuado, é uma chaga exposta e permanentemente salgada com a violência de predadores a soldo. Falando das causas da dramática situação em que se encontram os palestinos falarei, através deles, também dos curdos, também dos saarauis, dos outros povos expulsos das suas terras, ou nelas sujeitos à opressão, à discriminação em nome de interesses económicos ou estratégicos. Falarei dos responsáveis pela vergonhosa ofensa aos mais elementares direitos dos homens e mulheres que foram e estão a ser despojados de tudo, das suas vidas, das suas terras, das suas casas, dos seus filhos e até da sua dignidade enquanto seres humanos.

A situação da Palestina e da Declaração da ONUN de 29 de Novembro de 1947 constituem a mais crua e evidente prova da falácia da invocação do Direito Internacional. O Direito Internacional é o direito da força e o da conveniência. É o ignóbil aproveitamento da força, do uso da violência primitivamente animalesca, embora com as mais modernas tecnologias, que é hoje a lei na Palestina, como ao longo da história tem sido lei em tantas partes e em tantas circunstâncias, no colonialismo, na intolerância religiosa da inquisição, no racismo, na escravatura, no nazismo.

Na Palestina trava-se uma guerra, uma guerra desigual, evidentemente, mas uma guerra por objetivos tão antigos quanto os da existência humanidade, como os da guerra do Lagash, (atualmente entre o Iraque e o Irão) e que os historiadores consideram a primeira guerra, uma guerra para ocupar território, extrair dele matérias-primas, conquistar posições estratégicas. Sempre assim foi. A guerra na Palestina prova que nada se alterou na essência do comportamento humano nos últimos cinco mil anos e que esta guerra de setenta e cinco anos, não sendo eterna, concorre com a dos cem anos na Europa e a dos três séculos da guerra entre romanos e parsas. A humanidade que tem sido cúmplice e parte desta guerra na Palestina não tem motivos para se orgulhar de si.

A guerra da Palestina está a ser travada para uma potência ocupar um território importante no desenvolvimento da sua estratégia de império mundial. É uma guerra por procuração, num território alheio, conduzida por um estado-vassalo, exatamente do mesmo tipo e com os mesmos objetivos da que decorre neste momento na Ucrânia: os Estados Unidos têm interesse na Palestina como base para o controlo do Médio Oriente, do petróleo e da posição estratégica no Mediterrâneo e no Mar Vermelho, na ligação entre três continentes e utilizam como seu instrumento o Estado de Israel. Tal como estão interessados na Ucrânia para servir de base avançada contra a Rússia e utilizam o regime de Kiev.

Os palestinianos estão a defrontar os Estados Unidos. Todas as outras envolventes do conflito, a questão religiosa, a questão étnica, a questão da água, a compensação aos judeus pelas perseguições na Europa, os milenares e fantasiosos direitos de raiz bíblica invocados são cortinas de fumo para iludir a realidade de que a superpotência dominante considera a Palestina como um território que assegura a defesa dos interesses que considera vitais e colocou ali uma força para assegurar a sua posse: o Estado de Israel, tal como os europeus instalaram no século XII os seus cruzados hospitaleiros no Krak dos Cavaleiros, para controlar a rota de Homs, para Tripoli.

Para o Estado de Israel desempenhar esse papel de sentinela tem de assumir a condição de estado-nação totalitário, no sentido em que não pode admitir contradições fundamentais no seu interior, tem de ser um estado de uma só religião, de uma só língua, de uma só obediência, de um só projeto, de uma só história, de um só Exército, por isso todos os partidos israelitas defendem no essencial o mesmo programa supremacista judaico. Isto é, os islamizados não têm ali lugar, nem os falantes de árabe, nem os que se definam como árabes ou arabizados, nem os povos que tenham por história a permanência na Palestina após o êxodo de judeus para a Babilónia e o Crescente Fértil, para a Europa e para África.

A questão palestiniana assenta no interesse de os Estados Unidos ocuparem a Palestina com gente de sua confiança e na sua dependência. Por ser tão evidente este conflito entre o direito de um povo e o interesse de uma potência imperial devemos, todos os que se batem pela liberdade, defender e apoiar o direito dos palestinianos a existir. Do que se trata hoje, para os palestinianos na Palestina é de sobreviverem a uma política deliberada de extermínio levada a cabo com os meios poderosíssimos de uma potência militar nuclear, clandestina, (Israel) que serve de ponta de lança a uma superpotência. Como sobreviver nesta situação de tamanha desproporção de forças e de meios?

Os palestinianos têm de contar acima de tudo consigo. Resistir culturalmente, resistir fisicamente, mesmo à custa dos pesados sacrifícios que vemos diariamente será a única forma de ganhar o tempo necessário para alterar uma situação de domínio mundial que, fatalmente, se alterará mais cedo ou mais tarde. Os povos que se fecharam sobre si, que se entenderam com direitos especiais, que recusaram reconhecer os outros, acabarem por desaparecer como desapareceram as trilobites reduzidas a fósseis por não se terem adaptado ao meio que mudava enquanto elas se mantinham inflexíveis na sua carapaça.

O totalitarismo israelita, entendido como a única estratégia para a sobrevivência do estado de Israel como um estado teocrático, está historicamente condenado ao fracasso, não é uma solução de futuro, logo não é inteligente, mas é certo que as decisões políticas não primam pela racionalidade, mas pelas emoções e pelo oportunismo.

Terminava recordando a clássica frase de que só é vencido quem desiste de lutar e outra de Brecht lembrando que os manipuladores de opinião acusam de violento o rio que extravasa das margens, mas nunca acusam de violentas as margens que o oprimem.

Com a Palestina estamos a lutar por um mundo mais justo, menos sujeito, mais livre. Todos devemos honrar a liberdade para que ela mereça os nossos sacrifícios e, em especial, os sacrifícios dos palestinianos cercados e abatidos nos seus guetos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza e sujeitos aos pogrons dos seus opressores, aqueles que tendo errado pelo mundo, de quem se poderá dizer como Talleyrand disse dos Bourbons quando as voltas da história os trouxeram em segurança para França, acalmada a revolução, e lançaram uma política de perseguição mais violenta do que a que haviam sofrido: “Nada aprenderam com a história, nada esqueceram.”

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