C E R T A M E N T E ! | FUTEBOL | Tanta indignação para quê? | PAULO QUERIDO

Hoje descrevo o início do próximo ciclo de 30 anos do que já foi um desporto de paixões: a atividade económica do espetáculo do futebol, maximizada numa Superliga europeia. Tanta indignação para quê? É apenas o capitalismo, estúpido.

A Superliga Europeia é o fim do futebol? São precisas apenas duas letras para a resposta curta: . Vamos à resposta média.

As empresas detentoras das 12 marcas futebolísticas mais proeminentes da Europa formalizaram a criação de uma prova em circuito fechado, a Superliga Europeia, pouco antes de a UEFA anunciar a nova Liga dos Campeões no domingo à noite. Adeptos, futebolistas e governantes reagiram com gruas diferentes de consternação e antagonismo. O fim do futebol— decretaram muitos.

Do que se queixam?

  • Adeptos vêem o fim da “competição saudável” e da “paixão” e temem ter de pagar ainda mais caro o acesso a jogos e à informação que geram
  • Futebolistas foram marginalizados da decisão e desconfiam do que sucederá aos seus milionários privilégios, temendo também as represálias das organizações tradicionais, em especial a UEFA
  • Governantes vêem fugir das esferas centrais o controlo e a influência que são mecanismos de acesso e manutenção do poder, referindo que a prova “apunhala o coração do futebol” e “ameaça o princípio da solidariedade e mérito desportivos

Já vimos antes este filme. Tudo isto é cíclico e tem apenas e só a ver com o modo de produção capitalista. O futebol não apenas resistiu, como saiu reforçado de todos os momentos-charneira por que já passou na sua crescente financeirização.

O futebol atual vive um ciclo de 30 anos, iniciado na década de 1990 com a transformação dos clubes em sociedades anónimas. O abalo telúrico dessa década colocou por sua vez um ponto final noutra era, que vinha dos anos 1960 com o princípio das transmissões televisivas a ditar uma reordenação às organizações clubistas e federativas com os primeiros fluxos de dinheiro intermediado, isto é, causado pela comercialização da imagem, e não pelas receitas diretas de acesso aos estádios.

Em cada um desses momentos de transformação se gritou na rua que era o fim do futebol, da competição saudável e da “verdade desportiva”. E o que sucedeu em cada um deles foi tornar o futebol mais complexo com introdução de lógicas que visam a maximização de resultados — desde os métodos científicos aplicados ao terreno de jogo e aos intervenientes, com o alargamento do número de profissionais indispensáveis, até às empresas negociadoras dos direitos de transmissão televisiva e de imagem, passando pelos espaços publicitários dentro do campo e para a televisão.

Assisti à mudança do ciclo da década de 1990. Disse-se tudo tal e qual: as sociedades anónimas desportivas eram o fim do futebol. Não foi isso que se passou: tornou-o mais caro para quem consome e mais lucrativo para quem fabrica. Apenas e só. (Em campo, que é aquilo de que não se falou até agora, a mudança foi: ficou mais rápido e brilhante.)

Temos nesta mudança de ciclo a introdução de mais uma camada em cima das existentes: um grupo de empresas privadas quer criar um negócio particular com sede na Suíça, financiado por um banco americano, para maximizar o retorno do grupo mais lucrativo das empresas.

Seis notas mais:

  • a Superliga europeia não tem nada a ver com os modelos de organização das ligas americanas como a NBA. Antes tivesse, mas não tem
  • a Superliga é inevitável à luz da legislação europeia e nem a UEFA, com o sua vasta rede de influência e imenso poder, poderá travá-la mais tempo
  • a resistência e a vozearia das massas adeptas não têm nenhuma importância; desaparecem na próxima semana
  • a (expectável) indignação dos governantes tem ainda menos importância; é um protesto formal, para a fotografia
  • os temores de expulsão de clubes e de jogadores são infundados
  • único perdedor desta história será a UEFA, que vê uma fatia importante do controlo e dos lucros mudar de mãos para uma organização dos maiores clubes

Para finalizar: a ideia da Superliga é antiga e podemos situá-la na mudança do ciclo anterior, nos anos 1990, e numa pessoa: Silvio Berlusconi. O italiano magnata dos media viu mais cedo que toda a gente o potencial lucrativo do futebol enquanto espetáculo de televisão. Tornou-se proprietário de uma das melhores marcas mundiais de futebol, a AC Milan. Queria o controlo completo da atividade num ciclo fechado e começou a pressionar a UEFA ainda nos anos 1980.

Mas era cedo. As estruturas de burocratas tinham ainda toda a força. A suficiente para resistir — mas com cedências. A mítica Taça dos Campeões Europeus mudou de nome e de formato. Passou a Liga dos Campeões da UEFA e a ser disputada em grupos para minimizar os riscos de investimento. Na TCE um grande clube como a Milan podia perder a primeira eliminatória para uma equipa com uma fração do seu orçamento, o que é um ultraje para um empresário. Berlusconi queria uma prova disputada por 18 equipas que jogariam entre elas várias vezes; com a fase de grupos e a fase final disputada em duas mãos, a UEFA eliminou o risco de eliminações prematuras e garantiu mais exposição televisiva às grandes marcas, reduzindo o número de participantes (quase o dobro do que queria Berlusconi) ao mesmo tempo que aumentou o número de jogos de maior interesse mediático e multiplicou as possibilidades dos financeiramente mais poderosos chegarem às imensas recompensas do jogo final.

Os uis! desapareceram, a UEFA estava safa e ainda aumentou as receitas de publicidade para si e para os clubes, mas a ideia da Superliga não desapareceria, claro: o tipo de lucros, por um lado, e por outro a fraca regulação, cheia de alçapões, perdões e até apoios diretos e indiretos dos Estados, torna o controlo da atividade económica do futebol num prémio único e extraordinariamente cobiçado. Já este século voltou a aflorar num grupo de pressão com 14 clubes co-fundado por um português, Pinto da Costa, perdão, FC do Porto, que queria precisamente uma Superliga fechada — clube mixuruca (como o Benfica e o Sporting) não entra.

A escaramuça do G-14 com a UEFA redundou na Associação de Clubes Europeus, fundada em 2008: se queres vencer uma estrutura de burocratas, tens de a enfrentar com um exército de burocratas.

Portanto e para terminar: não é o futebol que acaba, mas tu podes acabar com o futebol. Qual é o teu momento? — essa é que é a pergunta certa. Em que momento é que o futebol deixa de ser “apaixonante” ou “verdadeiro” ou “merecedor”. Se calhar já te aconteceu em 1990 com as SAD. Ou quando percebeste, já este século, que a Federação Portuguesa de Futebol, e por conseguinte a seleção, não te pertence, é uma entidade privada, e por conseguinte a a seleção deixou de ser de “Portugal” para ser da FPF.

O meu começo no jornalismo foi num jornal de futebol e foi no desporto que trabalhei quase metade dos meus 34 anos de jornalista. Acabei por gostar de ver futebol e vi jogos mesmo depois de não ter de os ver por motivos profissionais. Sei qual foi o meu momento: quando, em agosto de 2017, um clube europeu pagou 222 milhões de euros por um futebolista. Considerei uma verba pornográfica. E tomei uma atitude. Nunca mais vi um jogo de futebol. E hoje foi a primeira vez, desde então, que concedi um minuto que fosse de atenção ao setor.

Se tiveres sorte, farás da Superliga europeia o teu momento de acabar com o futebol. Sem ilusões: a atividade continuará, agora num novo ciclo de provavelmente outros 30 anos. Até ao ciclo dos robôs contra humanos. Ou do ciclo de um só jogo, contínuo, entre quatro marcas “galácticas” (aposto nesta hipótese).

Paulo Querido in ” CERTAMENTE”

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