Ele escreve para mim | Beth Soares

Eu só o conheci recentemente. Nunca havia me aproximado, pois achava que era demais para mim. O clichê “muita areia para meu caminhão”, gritava forte toda vez que eu pensava nisso. Até que um dia dei de cara com ele que, sedutor, acenou-me. Olhei ao redor, para confirmar se era mesmo comigo, e percebi que havia apenas eu e ele — que sempre foi meu crush —na sala. Naquele momento, tive certeza de que esse segredo já não fazia mais sentido. Tomei coragem e o convidei para sair dali. Ele foi simpático, agradeceu e, posso jurar, pareceu aliviado.

No início, conversávamos todas as noites. Na verdade, eu só me mantinha atenta às suas palavras. Ele contou-me a história de um pescador. Uma história que falava do humano e da sua coragem. E sobre não termos controle de todas as coisas o tempo todo:  circunstâncias, natureza, o que fazem as outras pessoas, nem mesmo das nossas necessidades essenciais. Falava da importância de olharmos para a vida com simplicidade. E que a medida da nossa força vai muito além do corpo que nos serve de instrumento. Contou-me isso de maneira seca. Direta. No fim da história, chorei um choro doído pela beleza crua da vida. Percebi como é frágil a matéria de que somos feitos. E, ainda assim, ela pode nos levar longe, pois tem algo de indestrutível.

Nos dias que se seguiram, no caminho para o parque, ele foi me contando sobre a dureza de se tentar viver de livros. Descobri que há algo doce e sutil que alimenta quem vive das palavras. A gente se esquece de comer, inclusive. Porque nenhuma outra atividade consegue matar essa fome, que se agarra a nós e nos permite experimentar uma espécie de lucidez que faz com que tudo pareça mais vivo, mais intenso e mais cheio de sentido. O que é uma vantagem quando o dinheiro é pouco.

— Você tem certeza que é esse o caminho que quer?

Eu dizia que sim e ele se abria em sorrisos, em frente ao lago.

— O dinheiro é escasso. Mas não reclame.

Ele contou-me que sempre se arrependia e se sentia mal consigo mesmo quando reclamava da vida. Eu sabia perfeitamente como era sentir-se assim. Se bem que Sylvia, uma amiga que ele me apresentou, nos disse que podíamos reclamar:

— Falem sempre do que quiserem — ela nos tranquilizava. Não sabem então que todos os escritores têm o costume de falar constantemente naquilo que os preocupa? Só me prometam que não se preocuparão tanto e que comerão o suficiente.

Eu prometi e ele também. Mas quebramos a promessa, como todos os adultos costumam fazer com frequência. Porque as promessas são meninas criadas pelas certezas. E as certezas moram em gaiolas. Aprendi isso com Fiódor, um russo, nosso colega de profissão, que também virou um amigo.

Tínhamos muito em comum. Uma noite ele revelou-me que também renunciou a coisas que abriram um vazio dentro dele. Mas eu não precisava me preocupar, pois isso era coisa comum.

— Se a coisa for má, o vazio enche-se por si próprio. Se for boa, procure algo ainda melhor para preencher.

Assimilei aquilo com gratidão e alívio. Ernest disse-me, ainda, que quando a primavera chegar todos os problemas que eu imagino ter acabarão. Aconselhou-me a me cercar daquelas pessoas raras, que não são limitadoras da felicidade:

— Você as reconhece porque elas são tão boas quanto a própria primavera.

Tenho atendido aos seus conselhos. Afinal, tenho certeza: Hemingway escreve para mim.

Beth Soares | 11-02-2022

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