Borges, Cristina e a poesia cotidiana Beth Soares

A poesia já me salvou muitas vezes. Salvou-me, inclusive, da vontade de não escrever, sintoma que sempre indica coisa ruim, já que esta é a tarefa que mais me aproxima do que entendo por Deus. Falo de todo tipo de poesia. Daquela da vida cotidiana, que se esconde nos pormenores do mundo. Disfarçada de seu prato predileto, feito por uma amiga num dia despretensioso. Revelada na foto de um amigo, de tirar o fôlego pela beleza. Embalada pela prosa num comentário sensível ou numa mensagem de voz emocionada sobre algo que a gente escreveu. Ela está também na sabedoria de um pai que, do outro lado do oceano, diz a uma filha: “Não se preocupe. O Bem sempre encontra um jeito de chegar aos justos”.

A poesia sempre me pega de surpresa nas madrugadas. Acho que é nestas horas que ela anda por aí a nos espreitar pelos silêncios, pelas reflexões que chegam abraçadas à insônia. Quando o sono não vem – seja pela ansiedade por algo bom, seja pela preocupação com algo ruim – torno-me mais sensível aos sons, cores e acontecimentos comuns. E foi justo num desses dias pós-insônia que recebi o texto do escritor angolano José Eduardo Agualusa das mãos da professora Cristina. Nele, Agualusa dá voz ao escritor argentino José Luis Borges, falecido em 1986, tornando-se uma espécie de ‘médium’ e permitindo que Borges relate-nos como tem sido sua experiência no paraíso: “O Paraíso é pensar”, diz. O texto nos leva a uma reflexão sobre o mundo dos livros hoje e sobre a importância das pequenas editoras, com sua luta ingrata para que a literatura seja preservada. E termina: “A beleza é ingrata. E, contudo, é a beleza”. Diante daquele presente-poesia no meu primeiro dia de aulas em terras estrangeiras, deixei correr uma emoção aliviada. Aquela manifestação poética, para mim, era a confirmação de que eu estava há milhares de quilômetros da minha casa, da minha família, dos meus amigos e dos meus gatos, mas era exatamente onde eu deveria estar.

Após um semestre intenso de estudos, com direito a alguns sobressaltos, uma reunião foi agendada entre a professora Cristina, coordenadora do curso, e alguns alunos, para a resolução de questões ligadas à uma das disciplinas. Admiro-me e festejo internamente os diálogos francos e abertos. Foi o que aconteceu ali. Todos fizemos nossas críticas, demos opiniões e finalmente chegamos a um consenso. Abri mão de algo que, a meu ver, era o melhor a fazer, diante das possibilidades para mim e pelo que achei justo para o grupo. A reunião foi encerrada e, minutos depois, recebi um e-mail da professora. Era um agradecimento em forma de poesia, desta vez tendo ela como ‘médium’ de Borges, que certamente participou da videochamada entre mim e meu pai, dias antes. Borges me dizia:

Os Justos

Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire. / O que agradece que na terra haja música. / O que descobre com prazer uma etimologia. / Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez. / O ceramista que premedita uma cor e uma forma. / O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade. / Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto. / O que acarinha um animal adormecido. / O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram. / O que agradece que na terra haja Stevenson. / O que prefere que os outros tenham razão. / Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo. ”

Borges esqueceu-se apenas de uma coisa: os que nos permitem experienciar a poesia, também salvam o mundo.

Beth Soares | 12-02-2022

One thought on “Borges, Cristina e a poesia cotidiana Beth Soares

  1. Muito bom! Há palavras que lemos ou ouvimos no momento certo, como se tivessem sido escritas para nós. Este texto foi uma delas para mim . Obrigada, Beth, e dê graças a Deus pelo pai que tem…

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