VÊM AÍ OS RUSSOS | Paulo Sande

São tantas e tão variegadas as opiniões sobre o iminente ataque da Rússia à Ucrânia, que confesso a minha dificuldade em contribuir. Mas estou desde o início céptico sobre a possibilidade de um ataque – e suspeito que a sua iminência não passa de um mero recurso de intimação no âmbito de um processo negocial que é a um tempo político, diplomático, estratégico e económico. No fundo, é mais uma questão de eminência do que de iminência.

Permitam-me uma breve e limitada análise.

A GEOPOLÍTICA E A UCRÂNIA

O país onde a civilização russa (“Rus”) nasceu é hoje um nó geopolítico sobre o qual giram os interesses opostos de dois pólos de poder mundial – os EUA e aliados, a Rússia e aliados. De facto, a Ucrânia é um corredor entre a Europa ocidental e a Ásia, através do qual a Rússia faz passar uma parte importante da energia que exporta.

Apesar das muitas narrativas divergentes, trata-se de um Estado frágil, com problemas demográficos crescentes, cuja população se divide entre russófonos, a sul e leste, e ucranófonos, a norte, sem que haja uma correspondência perfeita entre russófonos e russófilos e entre ucranófonos e russófobos. Mas a tendência é essa, o que permitiu a fácil e quase não contestada internamente anexação da Crimeia.

A divisão tem mais a ver com o idioma usado, do que com a pertença étnica, que é a mesma.

E foi este o país que, ao anunciar a disponibilidade para considerar a adesão à NATO, despoletou a presente crise, como o anúncio da celebração de um acordo comercial aprofundado com a União Europeia em 2014 levou à invasão da Crimeia.

A RÚSSIA NÃO QUER:

• A NATO nas fronteiras ucranianas. Em 1992, a anuência de um politicamente enfraquecido Gorbachev à reunificação alemã teve como contrapartida mais ou menos implícita, que à NATO nunca fosse permitido chegar às fronteiras russas. Já chegou, via estados bálticos, mas a longa fronteira ucraniana é uma ameaça existencial à Rússia.

• Mais sanções. Cálculos recentes estimaram que a economia russa terá crescido menos 6% do que o seu potencial em virtude das sanções impostas após a invasão da Crimeia. Novas sanções, em caso de ataque, seriam terríveis para o país. Os ministros do G7 referem consequências económicas massivas e uma resposta “rápida, coordenada e vigorosa”, Scholz disse que as sanções serão imediatas e duras, Biden não fala de outra coisa. Mas é mais fácil falar do que fazer. Excluir a Rússia do sistema de pagamentos internacional SWIFT, por exemplo, teria consequências terríveis para a Rússia mas seria prejudicial para o mundo; abortar o Nord Stream 2 é decisão difícil, pois se pode tornar a Europa refém da Rússia também aumenta a oferta e segurança energética do continente.

• E a Rússia também não quer uma guerra na sua fronteira imediata, sobretudo uma com tantas frentes potenciais, com a NATO em pé(pré?)-de-guerra. Basta pensar nas consequências, para a vizinhança imediata, e até mediata, de uma guerra de alta intensidade – com armas autónomas comandadas pela inteligência artificial, drones, e tudo o mais que as modernas tecnologias permitem. 

E O QUE QUEREM OS EUA?

A Europa partilha com o parceiro americano um indiscutível amor pela liberdade, o Estado de Direito, a democracia e a defesa dos direitos fundamentais. Os europeus têm um indiscutível fascínio pelo irmão grande além-Atlântico.

Somos amigos. Somos mesmo? Tem dias. É que os interesses norte-americanos nem sempre coincidem com os europeus. E, em política, amigos, amigos, interesses à parte.

É por isso que a indústria norte-americana do armamento olha de um olhar benigno a possibilidade de um conflito que renove o seu lucrativo mercado. Ou que a indústria norte-americana do gás natural, quando o Nord-Stream 2 está à beira de se concretizar, sorria à possibilidade de o entupir. Ou que a inteligência estratégica norte-americana não descarte a projeção do seu poder, através de proxis como a NATO e os aliados europeus, a paragens distantes das fronteiras norte-americanas.

E sempre, mas sempre, com um olho na China.

E a Europa, o que quer? Ninguém sabe bem.

JÁ NÃO HÁ GUERRAS COMO AS DE ANTIGAMENTE

Os conflitos do século XXI serão cada vez mais um híbrido entre batalhas de baixa intensidade e novas formas de fazer a guerra, com novos actores a agir por procuração, conflitos subnacionalizados e transnacionalizados, meios como os ciberataques, piratas digitais, o espaço como nova fronteira militar, a impressão 3D e drones inteligentes a pairar.

Já não se fazem guerras como a do Solnado: atar uma guita à bala e depois parte-se a guita, perde-se a bala e é só prejuízo – mas é só esse o prejuízo.

A Rússia já começou a retirar tropas da fronteira com a Ucrânia. A Rússia não vai atacar.

SE OS RUSSOS ATACAREM EU COMO O MEU CHAPÉU

Tenho um chapéu em cima da mesa.

Se os russos atacarem a Ucrânia nos próximos dias, como tantos previram com um elevado grau de certeza, prometo que como o chapéu.

(a não ser que o meu médico proíba).

Retirado do Facebook | Mural de  Paulo Sande

4 thoughts on “VÊM AÍ OS RUSSOS | Paulo Sande

  1. Num blog de literatura, artes e cultura dizer, e passo a citar: “despoletou a presente crise”, é um erro de palmatória. De facto, a crise foi espoletada. Não despoletada, como erradamente é referido.

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