A moral das séries históricas da televisão | Carlos Matos Gomes

Moral, razão e ficção. Não sou um consumidor regular de televisão, mas consumo séries, de preferência históricas. O mundo desses espectáculos é o de heróis e mártires, de santos e vilões. Pretendem colocar o cidadão comum fora do palco da vida. Eu gosto de heróis e vilões em conflito com mártires e santos, aceito a alienação e admito-a (que remédio!). Era aqui que pretendia chegar depois de ter visto alguns episódios de uma série internacional : Os Médicis ; e de uma série portuguesa: Madre Paula. Ambas as séries nos levam às antecâmaras do poder. Do poder absoluto, que é o único.

As peripécias são emocionantes, os cenários e os guarda-roupas magníficos. Somos fascinados e encadeados. Somos alienados. O mal é deliberadamente apresentado como um banquete sumptuoso. Se repararmos, os mais abjectos e criminosos actos são-nos servidos (impingidos) como factos aceitáveis. Um assassínio, um incesto, uma violação, uma traição, uma tortura, um roubo, uma guerra particular, um tráfico, um envenenamento, um massacre são meras e normais acções de exercício do poder, ou da sua conquista, realizadas por quem está a jogar um jogo dentro das suas regras, fora do mundo dos cidadãos comuns.

A série diz-nos subliminarmente que «eles» que «aqueles eles» podem fazer aquilo. As séries históricas inculcam nas massas de hoje a ideia de que sempre foi assim — só mudam as roupas e faltam os computadores e os telemóveis — e que os eleitos (eleitos por qualquer processo e por quem quer que seja — de um Deus a um comité central a um colégio eleitoral) têm direito à amoralidade. Dizem que a família de Trump, ou do seu equivalente coreano Kim Jong-un, ou da família Saud, por exemplo, ou Putin, se tiver família, seguem a moral dos Médicis. Estamos num processo histórico. Nada a fazer.

Pelo seu lado, a série da Madre Paula diz-nos o mesmo quanto à amoralidade dos poderosos e mais alguma coisa que remete para o sagrado. Para os poderosos, além de não existirem limites morais, também não existe o sacrilégio. Um poderoso é um Deus! Apreciada sem as lentes da fantasia e da alienação, a série da Madre Paula apresenta-nos um convento como um bordel, com as esposas de Deus a servir de amantes dos reis e nobres; reis e nobres que o são por graça desse mesmo Deus! O caso dos reis e nobres freiráticos, como o D. João que ia às meninas ao convento de Odivelas, expõe o caso de um soberano pela graça de Deus que, em linguagem brejeira, encorna o Deus que o fez rei. Apesar disso, o Magnânimo teve direito a funeral com missa cantada e alma encomendada para os paraísos dos céus, assim como o terão tido o papa Alexandre VI da família dos Borgias e o Leão X, nascido João Lourenço Médicis!

Mas nunca pensamos nestas aberrações amorais quando vemos as séries. Acreditamos que vivemos num regime baseado na razão e na moral. Que a razão e a moral, isto é a distinção entre o Bem e o Mal, constituem os fundamentos da nossa vida em sociedade.

As séries históricas alimentam a ficção de os humanos de linhagem comum, e no nosso caso de homens e mulheres embebidos da cultura ocidental, de sermos racionais e morais. Na realidade somos um rebanho que come de tudo e vai para onde o levam. Falo por mim, claro.

Carlos Matos Gomes

Retirado do Facebook | Mural de Carlos Matos Gomes

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