“Todas as vidas são falhadas, mesmo aquelas que aparentemente foram mais conseguidas” | Marcello Duarte Mathias com João Céu e Silva in jornal Diário de Notícias

O ex-embaixador Marcello Duarte Mathias é dos poucos diaristas que têm registado a sua visão sobre os acontecimentos do mundo e a sua correspondência em Portugal.

Era, diga-se, porque desistiu de os escrever. No entanto, publicou recentemente um volume, Caminhos e Destinos, em que recolhe alguns dos seus escritos, uma matéria em muito parecida à que imprimia nos diários, tal é a sua mundivisão. Uma entrevista que é um pretexto para perceber a opinião de um “analista” sobre as grandes questões da portugalidade.

“Só acredito nas coisas depois de as escrever.” Não está com uma atitude demasiado radical contra o entendimento do mundo?

Recentemente, citei uma frase da Virginia Woolf que é assim: “As coisas só acontecem verdadeiramente depois de transpostas para a escrita.” Eu acho que isso é muito característico de quem escreve, pois tem uma dupla vida no sentido em que é testemunha de certas coisas, presencia-as, mas ao passar essas realidades para o papel as situações adquirem uma nova realidade. Ou seja, apoderamo-nos do que escrevemos e do que descrevemos. Dou um exemplo exagerado: se vejo uma exposição de um pintor, se escrevo sobre ele, quando me dizem que há uma nova exposição dele não me interessa, porque já vi, escrevi, estudei e disse o que tinha a dizer sobre ele. Portanto, escrever é apoderarmo-nos, tornar as coisas nossas.

Recusa voltar ao mesmo tema, mas reparo que neste livro regressa a Salazar. Sentiu-se na obrigação de voltar?

Sim, com uma diferença grande, o livro do Jaime Nogueira Pinto era o percurso do homem e do político, enquanto o do Bernardo Futscher Pereira circunscreve-se à política externa de Salazar e àqueles que a protagonizaram. São dois volumes que se completam mas com um ângulo de visão diferente.

Parece-me que perdoa um pouco a Salazar falando do homem para quem o tempo tinha “passado”, mas não o faz em relação a Marcelo Caetano. Neste caso, não perdoa tão facilmente?

Essa frase não é minha, mas é como quem diz “o tempo dele tinha passado” mas o homem agarrava-se ao poder e considerava que não tinha acabado. O drama do Marcelo Caetano é que vai para o poder com a ideia de reformar, mas o grande problema português era o ultramar. Não havia outro. A ideia dele era arranjar uma solução ultramarina, mas encontrou oposição na sociedade portuguesa ou naqueles que a personificavam. Vai a Angola e a Moçambique e quando volta diz no aeroporto: “Regresso com o coração em festa”, ou seja, encontrou-se na impossibilidade de levar por diante a obra que sonhava fazer.

Por que razão?

De ordem vária: legal e histórica. Dada a sua formação ideológica, pois era um homem muito mais à direita do que o Salazar, até o doutrinário do regime, sentiu-se impossibilitado e levou o país ao 25 de Abril pela impossibilidade de o reformar. Reconheço que é muito fácil hoje criticar o Marcelo Caetano e esquecer as forças mais ortodoxas do regime de então.

E ficou arrumado numa prateleira da história que provavelmente não seria aquela que quereria inicialmente?

Sim, ficou refém como acontece quando se sucede a um grande homem. Em França, isso aconteceu com Pompidou, que ficou apagado pela sombra do De Gaulle; ou como aqueles que sucederam a Mao Tsé-tung ou a Estaline, resguardadas as devidas proporções. Aliás, já ninguém sabe quem lhes sucedeu. Caetano sofreu isso e, todavia, governou durante cinco anos, só que o Salazar apagou a sua presença. O que é certamente injusto.

Pompidou começa a ser redescoberto. Acha que o mesmo acontecerá com Caetano, apesar das inúmeras biografias que têm saído?

A prova são mesmo essas biografias que saíram, mas no caso de Pompidou, como promoveu a industrialização da França na senda do general de Gaulle, é mais fácil.

Outra figura que cita pelo menos duas vezes é o general Spínola, de quem não parece gostar. É assim?

Sim, o Spínola parece-me um homem muito ingénuo e com pouca cultura política, e esse acho que não ficará na história. Era um homem certamente bem-intencionado mas com muito pouco jogo de cintura.

Tem esta citação no Brevíssimo Inventário: “A quem pertence a minha memória?” É uma questão que lhe vem à mente de vez em quando ou é só uma figura de retórica?

Aqueles que se dedicam ao diário têm uma noção muito aguçada do tempo que passa e eu desde muito novo que tive essa sensação da premência do tempo e do tempo que passa. A certa altura, quando se recorda ou tenta rememorar um certo número de acontecimentos, existe também uma recordação que é falsa porque a imaginação tem uma dimensão enorme. O que recordamos é uma falsidade ou fica muita aquém da verdadeira realidade. Daí a questão de a quem pertence a minha memória.

É mais fácil ficcionar a memória dos encontros de Gorki e de Lenine na ilha de Capri como fez noutro livro?

Claro. O livro nasceu de uma fotografia célebre do Gorki a jogar xadrez com o Lenine em Capri. Fui vasculhar e descobri que o Lenine era muito amigo do Gorki e passaram juntos duas largas temporadas. O que me interessou nesse livro era o confronto entre um humanista – Gorki -, embora radical, revolucionário e iconoclasta, e Lenine, que é o doutrinário e revolucionário puro. O Lenine sabia que era o Robespierre e tinha a revolução na alma, queria chegar ao poder e definira o que iria fazer, tanto que terá dito ao Gorki, em 1920, para não regressar porque aquilo iria ser muito duro para um lírico e um escritor como ele.

Para não morrer angustiado, como acabará por acontecer?

Morreu angustiado e completamente refém do Estaline. É curioso que um homem tão puro e idealista acabe no papel de cínico que não era.

Foi estranho ler aquele seu livro, que parecia mais de um esquerdista…

O que me interessava era o embate entre as personalidades. Acho que são os homens que fazem a história, que também é o resultado de um certo número de condicionalismos económicos, sociais e históricos. A mim o que me interessava era pôr dois revolucionários em frente a outro, ligados por uma grande amizade e uma admiração mútua mas num cenário de confronto extraordinário que é a Rússia antes da Revolução de Outubro.

Portanto, não considera que é um livro de um esquerdista?

Não, de todo.

Mesmo notando-se muita simpatia pelas figuras de Lenine e de Gorki…

Sim. Há uma parte que gosto muito e é completamente ficcionada. Quando Gorki visita Lenine, que está debilitado e quase a morrer, numa cadeira de rodas com a cabeça tombada e ao fundo, a imagem que paira é a sombra de Estaline.

Estamos nos 100 anos da Revolução Russa. Acha que esse é um dos factos mais marcantes do século XX?

O comunismo é o dado marcante do século XX, não só na União Soviética mas também na China. Mas o que é impressionante é a capacidade de atração que o ideário comunista teve nos anos 1920 e 1930, mesmo depois de já se saber sobre os campos de concentração ou que na sede no NKVD se matavam pessoas com um tiro na nuca depois de os torturar. Aliás, [Lavrentiy] Beria dizia que pegava numa pessoa qualquer e xis horas depois eram o que ele desejasse. Depois vem a guerra e a Rússia teve um papel fundamental na derrota do nazismo. Com a morte de Estaline, o que é extraordinário é os intelectuais viverem apavorados com a ideia da orfandade. Era muito fácil ser comunista porque era um amparo. O comunismo é, sem duvida, o dado marcante do século XX.

No mesmo Breviário tem outra frase que diz: “Toda a autobiografia é uma sucessão de íntimas obsessões.” Isto refere-se a um diarista ou a todos os seres humanos?

Sim, acho que é de todos nós.

Mesmo que fujamos dessas obsessões?

Sim, sem querer cair numa espécie de psicanálise – a um freudismo de feira -, acho que todos temos dentro de nós uma pessoa com a qual dificilmente nos confrontamos. Julgo que todas as vidas são falhadas, mesmo aquelas que aparentemente foram conseguidas. Não falo dos domínios profissionais, mas do nosso foro íntimo, através das afetividades, dos encontros ou desencontros, das nossas ações, da diferença entre o sonho e a verdade, entre ambição e realidade… Somos todos uns falhados, uns mais do que outros, uns conseguem esconder isso melhor. Há no fundo de todos nós um recheio de obsessões íntimas e a vida é uma tentativa de nos resgatarmos dessas obsessões e dessa sensação de fracasso.

Qual é o seu lugar nessa sensação de fracasso?

Faz-me lembrar a história do Eça e dos amigos quando fizeram os Vencidos da Vida. Houve alguém que lhes dissesse isso e o Eça concordou: “Somos vencidos da vida em relação àquilo que tínhamos projetado.” Isso é válido para mim como para qualquer pessoa. Portanto, também sou um falhado nesse sentido.

Isso faz lembrar esta grande persona que é Portugal…

Sim, esse paralelo é muito justo porque Portugal está sempre aquém do seu destino e sempre manco. Portugal é aquela coisa: descobrimos o mundo e somos pobres. Isso via-se no romance Equador, que até surpreendeu Miguel Sousa Tavares ao referir que nunca tinha pensado que alguém pudesse dar essa interpretação ao livro. Que é válida porque o romance é a história de um país que fica sempre aquém e não acontecem por acaso esses nossos sebastianismos constantes, essa nossa permanente psicanálise sobre o que é Portugal. Vivemos permanentemente com o sentimento de frustração pela glória perdida, o que é terrível.

Curiosamente, o seu texto sobre o Equador é dos poucos da altura porque toda gente se recusou a recensear o livro. Não é estranho que a obra que mais vendeu na literatura portuguesa neste século XXI tenha sido ignorada a esse nível?

O problema é que em Portugal os escritores escrevem para os escritores e não para o grande público. Os intelectuais vivem para os intelectuais e há uma grande rivalidade entre eles. O Equador tem imenso interesse porque está muito bem escrito e de forma legível para ir ao encontro dos outros. Isso é malvisto em Portugal.

Tem acompanhado o trabalho das novas gerações de escritores portugueses?

Não… Gosto muito do Mário de Carvalho, da Teolinda Gersão, do Almeida Faria, do Mega Ferreira e de outras pessoas que agora não me vêm à cabeça. Li o Agualusa, mas pouco; o Mia Couto, que tem uma frase extraordinária: “A minha pátria é a minha língua portuguesa.” É a adaptação e a plasticidade que o português é capaz no Brasil, em Moçambique, Angola e nos outros países onde se fala o português, que é uma das projeções positivas de Portugal no mundo.

Na sua crítica ao Equador diz que o romance ensina que é a ficção que torna a história inteligível…

Hoje há uma tendência nesse sentido e a historiadora Margaret MacMillan diz que a história é recordação do passado, mas é também tudo aquilo que nós decidimos esquecer. Isso então em Portugal é extremamente válido, porque cada historiador tem a sua visão e nalguns há um sectarismo enorme. Um romance, para citar um exemplo muito simples, permite perceber o que era Portugal no século XIX, basta ler Os Maias e fica-se a saber muito mais do que a ver uma estatística ou a ler um economista ou um historiador. O romance tem uma dimensão imaginária que não é falsa e parcelar da realidade. É o romance que torna inteligível a história.

Pode-se dizer que é um historiador frustrado?

O que é a história? O que é a cultura? A cultura é saber relacionar as coisas, falar da Revolução Francesa e saber o que se passa em Portugal na mesma altura. É uma fonte inesgotável, por isso para se ser historiador é preciso ter as credenciais adequadas.

Que opinião tem de outros diaristas, José Saramago e os Cadernos de Lanzarote, por exemplo?

São interessantes mas repletos de queixume. Do que gosto dele é A Viagem do Elefante, que é muito bem feito; de O Ano da Morte de Ricardo Reis, infelizmente ele teve de meter a politiquice lá no meio do livro, e o Memorial do Convento.

E o Evangelho segundo Jesus Cristo?

Não li.

Por causa de Sousa Lara…

Não, governo-me pelo que sei e pelo que sinto, os outros são-me indiferentes.

Voltemos ao queixume nos diários. Não gosta dessa pose?

O Vergílio Ferreira no seu diário também é queixume, mas tem uma raiva cheia de talento. Diz mal e vinga-se de toda a gente. Coitado, como diz Eugénio Lisboa, quis ser prémio Nobel e nunca conseguiu. Era como as mulheres muito bonitas que querem ter uma consagração permanente. O Vergílio queria uma consagração ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar, mas mesmo assim o seu queixume é perdoável.

E mal morre, a obra dele praticamente é esquecida.

Porque estamos em Portugal, onde ninguém liga, por exemplo, aos prémios literários. Há imensos prémios, ou seja, não existem. Quem integra a shortlist do Prémio Man Booker vê os seus livros venderem-se, é como ter um Óscar. Aqui, ter ou não ter prémio é igual. Fui recentemente receber a Castelo Branco o Grande Prémio de Literatura Biográfica e ninguém fala disso. Não interessa ao Menino Jesus nem as pessoas vão comprar mais um exemplar por eu ter recebido esse prémio ou outros. Aqui, as pessoas só leem A Bola.

Mas gosta dos diários que Miguel Torga escreveu?

Sim, é um grande diarista. O diário do Torga é o diário da antologia que ele não escreveu. Ao contrário do Vergílio Ferreira, em que cai tudo no diário, o Torga é de uma contenção permanente e torna-se uma obra literária.

Que usa até para fixar a sua própria posteridade.

Todo o escritor faz um pouco isso ao escrever diários, está a querer fixar junto do leitor uma imagem de si próprio. A posteridade encarrega-se de desmistificar ou não as coisas.

Os seus diários são para a sua própria geração ou também para outras mais novas que os poderão vir a ler?

É um pouco ridículo estar aqui a falar dos meus diários e daquilo que eles possam ter de bom. Tenho essa pretensão de que podem ser lidos daqui a dez anos ou quinze por outras gerações mais novas, desde que sejam sensíveis à visão do mundo que eu transmito.

Escreveu o Diário da Índia. Acha que conseguiu compreender aquele país tão diferente?

Seriam precisos 400 séculos para compreender a Índia. Há quem repudie logo a Índia porque se sinta completamente intruso daquela extraordinária espiritualidade e daquela metamorfose permanente que é a cultura indiana. Podem fazer-se várias aproximações a uma verdade que não se sabe qual é. O que fica da dimensão espiritual hindu?

Ser diplomata dificultou uma aproximação?

Todo o diplomata deve sair da sua torre de marfim, mas se é professor universitário em Bombaim será mais fácil entrar em contacto com a realidade indiana. Ou se é um arqueólogo e está a trabalhar com uma equipa indiana cinco, seis ou sete anos no país.

O Diário de Paris foram páginas mais fáceis?

Para mim sim, em Paris estou chez moi e sinto-o nos meus livros. Gosto de passear na cidade, das esplanadas, dos passeios, os prédios são lindíssimos. Muitas vezes perguntam-me: o que vais fazer a Paris? Nada, vou almoçar, jantar, ver uma ou duas exposições e andar por ali. Rio de Janeiro é uma cidade cativante pela natureza, Nova Iorque pela energia e Paris pela sua beleza arquitetónica.

Assegura que fechou a diarística com o Diário da Abuxarda, aqui mesmo ao lado. É assim mesmo?

A Abuxarda tornou-se imortal não graças ao meu diário mas à placa na autoestrada que diz Amoreira, Cascais, Alcabideche, Abuxarda. Ninguém conhecia a Abuxarda, que antigamente se dizia Abucharda – é um nome que considero muito bonito.

Porque fecha o seu registo com este Diário da Abuxarda?

É uma questão de idade. Há muita gente que pergunta por que não continuo. Decidi acabar porque quando se escreve um diário tem-se um olhar diferente sobre a vida. Tenho pena de ter deixado de o escrever, mas deixei. Agora, vou ver se publico um livro sobre o meu pai. Estou entretido nesta ocupação, além disso, sou muito pessimista. Estou sempre convencido de que tenho uma espada sobre a cabeça… Tive três cancros e, portanto, estou à espera do último. O próximo vai ser definitivo, creio, e vivo um pouco com essa mania do que me irá acontecer.

Inventar um diário não seria o melhor diário?

Nunca pensei, mas todo o diário é uma efabulação, uma invenção da nossa própria vida no quotidiano. Essa parte fictícia é muito importante em todo o texto autobiográfico.

Nunca sentiu necessidade de escrever numa outra língua para se expressar melhor?

Não, nunca escrevi um texto longo em inglês ou francês.

Há diários que têm lacunas propositadas. Também o fez?

Não há diário que seja verdadeiramente autêntico ou então eram 500 páginas por dia. Há uma parte lacunar, por pudor, por respeito por nós ou pelo leitor. Há, necessariamente, uma parte de omissão, voluntária ou involuntária.

Quem começa um diário tem sempre intenção de o publicar?

Não necessariamente. Isso vê-se na Inglaterra, país que é muito fértil em diários e onde existem muitos publicados apenas cem anos depois. Muitas vezes das mulheres dos oficiais ingleses que estiveram na Índia.

Que são uma visão muito interessante.

Interessantíssima, porque é a visão dos bastidores dos militares, da situação social na Índia, da realidade histórica, sobretudo daquela altura em que houve a guerra dos Cipaios.

O escritor Evelyn Waugh tinha um lado sexual muito explícito nos seus diários – rasgou tudo – e trata da beleza e da sedução do “feminino”. Não o faz nunca porquê?

Sou um homem casado, feliz, tenho filhos excecionais. Não me interessa trazer à colação aventuras que possa ter tido quando era solteiro ou parecidas.

Há alguns diários que os autores só publicam postumamente. Nunca o pensou fazer?

Não. Se tivesse um Diário da Abuxarda-2 talvez só fosse publicado a título póstumo.

E no seu baú existem algumas páginas inéditas?

Não tenho nada dentro do baú.

Utiliza vários espaços geográficos. O cenário beneficia a construção de um diário?

Acho que sim. Quando fui para a Índia levava a intenção de escrever um diário sobre o país e, curiosamente, o que foi publicado pouco tem sobre a Índia. Há muita coisa sobre Portugal, sobre os jornais estrangeiros. A razão deve-se a ser uma das maneiras que tive para me evadir de um meio ambiente que por vezes era muito penoso, sobretudo naquele período do verão entre abril e junho. Escrevia o diário para me sentir noutras paragens.

Que diários o inspiraram para escrever os seus?

Gostei muito do diário de Julien Green, também do de André Gide, do de Cesare Pavese, do diário de Kafka, de um amigo de Magritte, um homem chamado Louis Scutenaire, em oito volumes. Inspiram-me.

E o do Ruben A.?

O Ruben A. sim. O Mundo à Minha Procura é muito bom, o único defeito que tem o Ruben A. é aquela tendência para o neologismo e inventar palavras. Ou se se revoluciona completamente a linguagem, que é o caso de Céline, ou não funciona. São facilidades num homem que tinha uma apreensão muito justa dos males e das insuficiências da sociedade portuguesa.

Temos tido aí alguns diários, ou antes livros de revelações, como o de José António Saraiva…

…Não li.

Confissões desse tipo devem ser publicadas?

Talvez a título póstumo, de outro modo não têm grande interesse. Em geral, resvala-se para a coisa anedótica ou supostamente clandestina.

Como preparava os seus diários?

Tinha cadernos onde tomava notas. Posso dizer que quando se tem um diário vive-se em função dele. Vai-se a uma exposição em função do diário, tem-se uma conversa em função do diário. Até se perdem oportunidades para fazer isto e aquilo porque se não interessa ao diário evita-se. Agora já não perco as oportunidades porque acabou o diário.

Nos seus diários cortou muita coisa que achava que não devia contar neste tempo?

Não. Ao iniciar a escrita censuro-me à partida, mas é uma censura num sentido estético. Muitas vezes ao reler os escritos faço uma seleção e escolho o que não envelheceu. O diário também obedece ao critério do que não envelhece, como é o caso da correspondência entre o escritor Saint-John Perse e Calouste Gulbenkian. Tratavam do tema do exílio ou da Europa, que são temas que não envelhecem e que eram tão válidos ontem, anteontem como o são hoje. É nesse sentido que ao escrever um diário me censuro logo à partida nesse sentido.

Se agora escrevesse um diário confrontava-se com situações muito complicadas na vida política internacional. Comentaria o brexit?

Com certeza. O brexit é o resultado dos erros da construção europeia, um processo que foi entregue aos eurocratas, aos tecnocratas.

Enquanto Durão Barroso estava a presidir a Comissão, os portugueses davam-lhe muito pouca atenção. Como vê essa situação da relação entre portugueses?

É importante ter um português como presidente da Comissão, porque tem maior sensibilidade para os nossos problemas. Era positivo até para o nome de Portugal.

O mesmo não se está a passar com António Guterres neste seu mandato à frente das Nações Unidas?

Esses mandatos dependem por norma dos Estados e nas Nações Unidas ainda muito mais. O secretário-geral das Nações Unidas representa um papel simbólico, mas muito importante. É também uma presença de grande prestígio a nível internacional, pois a palavra de Guterres é ouvida e tem eco, mas será sempre ele sozinho naquele cargo. Quem manda é o Conselho de Segurança. Vale a pena ler as memórias do Boutros-Ghali, que contrariou a política americana, e ver como os EUA chumbaram a sua reeleição.

Se fosse Cristiano Ronaldo não aconteceria este silêncio que se escuta a propósito de Guterres?

A meu ver, o país vive doentiamente ligado ao futebol, existe uma omnipresença desse desporto entre nós. Também vivi na Bélgica, em França, no Brasil e na Argentina, e em nenhum destes quatro países onde o futebol é importantíssimo tem esta dimensão na sociedade. Até as tradições são esquecidas à conta do futebol.

Está a dizer que somos um país antigo sem respeito da tradição. E o que diz de países mais novos, como os Estados Unidos, onde Donald Trump está a rasgar muito do legado dos pais fundadores?

O Trump é um epifenómeno que vai passar como passaram outros. O drama do Trump é que ele vai para a Casa Branca com uma formação errada. Qual é essa formação? A de um empresário, ou seja, pensa se investe ou não, se o negócio dá benefício ou não interessa. Toda a visão que tem da política externa e do papel dos Estados Unidos da América no mundo é a de uma perspetiva de empresário. Ora, os empresários são importantíssimos na economia dos países, mas não se pode aplicar este princípio de dar lucro à governação.

Ronald Reagan conseguiu ultrapassar o papel do artista e tornar-se um bom presidente. Acha que Trump alguma vez conseguirá ultrapassar esta realidade diária que se observa constantemente nos noticiários?

Não sei, se o Trump ouvisse os diplomatas ou as pessoas com experiência… Mas tenho a impressão de que confia muito na sua própria visão e ouve meia dúzia de conselheiros que o empurram nesse sentido que estamos a observar .

Fez em tempos uma pergunta nos seus diários: “A quem pertence a minha memória?” Acrescentava outra: “Quem em mim tem saudades dela?” Qual é a verdade?

Eu hoje sou um velho e tenho saudades daquilo que fui quando tinha 15, 18 anos. Tenho pena de não dar ao velho que hoje sou um outro tipo de memórias, mais ricas do que aquelas que foram as minhas.

http://www.dn.pt/artes/interior/todas-as-vidas-sao-falhadas-mesmo-aquelas-que-aparentemente-foram-mais-conseguidas-8709940.html

 

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