Uma viagem ao Brasil | Crónica – dia de reflexão Carlos Esperança

Um poeta brasileiro definiu os compatriotas como portugueses à solta. Eça, com ternura, escreveu n’As Farpas: «O Brasileiro é o Português – dilatado pelo calor». É esse português que vale a pena conhecer enquanto se aproveita o calor e descobre o país que lhe serve de habitat.

Há cerca de uma década e meia passei dez dias no Rio e fiquei fascinado. Jurei que voltava, promessa de que me desobrigaria nas férias do ano 2000, em setembro, alargando a visita a outras paragens.

Visitar o Brasil não é um ritual que se cumpre ou a folha que se rasga no calendário das viagens. É um encontro com a história, um sonho de que se acorda num país imenso, uma viagem aos afetos da nossa memória.

Para lá do mar, da areia, das ondas e da sua espuma, está um povo de braços abertos aos nossos abraços.

Em Salvador estão os meninos pobres de olhos doces, capitães da areia, a ver o Quincas ou o Quincas Berro de Água a sair a barra em seu saveiro ou a aguardar Vasco Moscoso de Aragão – Capitão de longo curso – para afogar-se em álcool, nos botequins, em noite de tempestade.

Em Salvador viveu Jorge Amado do carinho de Zélia, seu elixir, vivem deuses, muitos deuses, trazidos pelo mar, sempre pelo mar, pelo mar do imaginário negro onde habitam. Jorge Amado há-de continuar a viver enquanto as cinzas andarem por ali. Dos livros, dos muitos livros que escreveu, saltam personagens que viram nomes de ruas, largos, galerias, restaurantes, lanchonetes e churrascarias.

Em cada esquina há um templo, em cada baiano um crente radical, em cada criança um rosto onde espreita a fome, rostos onde brilham olhos de lágrimas secas pelo sofrimento.

E há a cor, a imensa cor, que do céu, da areia e do mar salta para as telas em tons de amarelo pela mão de numerosos pintores que pululam em Salvador.

Natal e Fortaleza são outros portos onde se amarram as âncoras das recordações, mercados onde se sacia a febre das compras, pontos de partida para ilhas tropicais, sítios de chegada de extenuantes caminhadas.

E há os buggys em viagens radicais pelas dunas dos nossos medos, jangadas de tracção humana a fazer a ponte entre duas margens, ilhas tropicais na exuberância da sua flora, os lagos e as praias de águas mornas de tantas e variegadas cores e areias cálidas de tantos tons, e as gentes, as gentes afáveis que se pelam por um papo.

Ficam na memória os olhos meigos dos meninos de Salvador e o humor, num país cuja gente tem todos os nossos defeitos acrescidos de outros por conta própria ou geração expontânea.

E no Rio de Janeiro lá aguardam, entre o mar e a vegetação luxuriante, Copacabana, Leblon, Tijuca, o Pão de Açúcar à espera do medo e vertigem dos veraneantes, o Corcovado, o Jardim Botânico, enfim, a cidade mais maravilhosa do mundo, ferida pelas favelas da Rossinha, Pavão Pavãozinho, Canta Galo e tantas, tantas outras, que sobem ao cume de montes e chegam ao céu.

Não sei se foi macumba ou sortilégio que me levou uma segunda vez ao Rio. Sei que gostava de voltar outra vez ainda. Já no último dia, pouco antes de entrar no avião onde me aguardava um comandante com alma de poeta e convicção de pastor evangélico, com duas homilias preparadas, uma para a recepção e outra para a despedida, visitei a catedral, paradigma de uma certa modernidade do Brasil.

Encontrei um pedido carregado de fé que um devoto depositou junto da imagem da Senhora da Aparecida – verdadeira metáfora de brasileiro padrão. Transcrevo-a com o respeito devido, em letras maiúsculas, como o fazia o texto:

 “EU UBIRAJARA DA CONCEIÇÃO ESTO PRESIZANDO DE UMA COMPAEIRA PARA ME DAR AMOR E FAZER, UMA JOVEM MULER SEM COMPROMISO QUE TENHA CASA.”

Por desespero, ou por não se fiar na Virgem, dirigiu a S. Sebastião igual pedido, com a solicitação suplementar de um emprego. Os pedidos estavam bem à vista, sob os olhos dos ícones que não poderiam alegar desconhecimento, a menos que se refugiassem em pretextos ortográficos.

Quem sabe se os pedidos que o céu não tinha escutado já começaram a ser atendidos por ouvidos mais terrenos no país de Lula. Quem sabe.

Carlos Esperança – Jornal do Fundão e Pedras Soltas (ed. 2006)

Retirado do Facebook | Mural de Carlos Esperança

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