É PRECISO RESISTIR AO “DEMOFASCISMO” | por João Melo, Opinião/DN

O conflito geopolítico e ao mesmo tempo tribal que decorre presentemente na Ucrânia criou um novo (ou velho?) fenómeno, cada vez mais inegável e incontornável: o recurso, por parte das democracias, a métodos fascistas, a fim de imporem os seus pontos de vista e conquistarem “simpatias” para a sua causa. É o que eu chamo de “demofascismo”.

A recusa liminar em discutir a complexidade da situação na Ucrânia e em reconhecer que a história não começou no dia 24 de fevereiro de 2022, quando a Rússia invadiu o país vizinho, foi a primeira manifestação desse fenómeno.

Seguiu-se-lhe a onda de russofobia que assolou o Ocidente, com a discriminação de todo e qualquer cidadão russo, o cancelamento de artistas e desportistas, a proibição de obras literárias russas nas escolas e outras aberrações.

A essa tentativa de “desrussificação” a que assistimos, tão patética e delirante como o argumento da “desnazificação” usado por Putin, não escapam sequer algumas das mais reputadas autoridades ocidentais em termos de estratégia e liderança política que têm chamado a atenção para a insanidade da atual guerra na Ucrânia, como Kissinger ou a ex-chanceler alemã Ângela Merkel. Se não fossem de lamentar, as reações de alguns dos medíocres líderes ocidentais atuais aos alertas dessas figuras seriam motivo para umas boas risadas.

Mas o “demofascismo” suscitado pela guerra da Ucrânia vai mais longe. O Ocidente (leia-se: a santa aliança entre os EUA-NATO-União Europeia) não esconde a sua irritação e mal-estar com o facto de a maioria demográfica mundial, em particular o Sul Global (África, Ásia e América Latina), manter uma posição de cautela em relação à guerra na Ucrânia, evitando cair na armadilha do discurso maniqueísta hegemónico (diferente de “maioritário”).

O mais recente exemplo dessa irritação foi a aprovação pela Câmara de Deputados dos EUA, no passado dia 27 de abril de 2022, do “Countering Malign Russian Activities in Africa Act” (H.R. 7311). A medida autoriza o Departamento de Estado norte-americano a monitorar as ações de política externa da Federação Russa em África, incluindo as suas ações militares e outras manifestações “malignas”, seja lá o que isso for. Não li (talvez por minha falha) em nenhum dos grandes jornais europeus que habitualmente consulto nenhuma referência a esse facto, mas o canal de televisão da África do Sul (SABC) divulgou uma peça completa sobre o assunto, a qual pode ser vista no YouTube.

O saite (caro editor, deixe passar esse neologismo) de notícias etíope Borkena também publicou, no dia 31 de maio, uma matéria completa sobre esta medida aprovada pelo Congresso norte-americano.

“O Congresso dos EUA não tem o direito de ditar quais devem ser as relações entre a Federação Russa e os Estados-membros da União Africana”, lê-se no artigo, assinado por Abayomi-Azikwe. O autor não tem dúvidas de que o decreto aprovado pelos congressistas reforça o neocolonialismo em África.

Pergunta-se: qual é a posição oficial dos países africanos em relação à guerra na Ucrânia? Apoiarão eles a invasão russa, tal como querem fazer crer os “demofascistas” atuais, recorrendo ao velho lema “quem não está comigo está contra mim”?

Não. A posição africana é simples: é preciso encontrar uma solução diplomática para a guerra em questão.

Os ideólogos ocidentais querem convencer-nos de que, na Ucrânia, está a travar-se uma guerra entre a democracia e a autocracia. O Sul Global não está convencido disso.

Na verdade, a realidade político-ideológica na Ucrânia e na Rússia tem mais semelhanças e afinidades do que reza a propaganda, quer russa quer ocidental.

Portanto, África não pode ser forçada a escolher um ou outro lado. Tal como defendeu Subrahmanyam Jaishankar, ministro dos Negócios Estrangeiros da Índia, no caso do seu país, África deve poder posicionar-se, relativamente a qualquer tema, de acordo com um balanço entre os seus valores e os seus interesses.

Escritor e jornalista angolano

Diretor da revista África 21

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