A EUROPA E AS SUAS FRONTEIRAS: DILEMAS CULTURAIS E GEOPOLÍTICOS | Ilídio do Amaral

EDITOR: ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA

“Fixai deste mundo a Europa, o sólido e imobilizado chão sobre o

qual desliza pacífica a europeia união para leste.”

Tendo em conta apenas o século XX as fronteiras de muitos países europeus, sobretudo do centro e do leste, foram desenhadas e redesenhadas várias vezes, resultando disso modificações políticas e sociais importantes. Isto ocorreu antes e depois da I.ª e da II.ª Guerra Mundial, bem como na sequência do colapso da União Soviética.

Mais modificações sobrevieram com os alargamentos sucessivos da União Europeia. Têm sido alteradas fronteiras externas, dissolvidas as internas, reemergiram velhas fronteiras, houve o estabelecimento de novas fronteiras. Um certo número de antigas regiões fronteiriças passou de fronteiras nacionais a regiões fronteiriças internas da União Europeia como um todo.

Muita gente viu-se perante mudanças que afectaram não só os quotidianos das suas vidas, mas também alteraram situações nos planos regional, nacional e europeu.

Num sentido político, os alargamentos da União Europeia mudam a natureza das relações entre Estados. Antes da adesão, eles eram tratados pela União como partes da sua política de relações externas, depois dela passaram a constituir questões internas, ainda que em muitos casos seja deficiente a política externa da União.

Os alargamentos têm feito entrar países com diferentes níveis de desenvolvimento e a integração aumentou as disparidades regionais. As áreas metropolitanas e urbanas crescem desmesuradamente, enquanto as rurais e industriais antigas, bem como as periféricas da União se mostram em desvantagem.

O ano de 2004 registou a maior amplidão da União Europeia, com a entrada de 10 novos membros, 8 do leste europeu, bem encostados à Rússia, anteriormente separados pela Cortina de Ferro, mais os estados insulares de Malta e de uma parte de Chipre, ambos no Mediterrâneo, o primeiro entre a Europa e a África, o segundo num recanto entre os litorais turco e sírio. Em Janeiro de 2007 juntaram-se a Roménia e a Bulgária, ambas ex-repúblicas de regime soviético, localizadas mais próximo da Turquia.

A União Europeia passou assim de 15 para 27 membros. A parcela de regiões de fronteira na área total da União subiu de 22% para mais de 36%, enquanto a percentatagem de população vivendo em tais regiões saltou de 15 para 27%. Com isso aprofundou-se o debate sobre as perspectivas de futuros alargamentos e das relações entre a União e os vizinhos próximos, como a Rússia, a Bielorússia, a Ucrânia e a Turquia. À medida que a União Europeia alarga, no quadro geográfico do seu continente, as suas fronteiras são deslocadas para leste. Dão-se nelas transformações políticas e socioeconómicas que, se por um lado, podem potenciar novas oportunidades de desenvolvimento regional, por outro lado, levantam problemas e tensões.

Com uma União mais alargada e com o compromisso de apoiar iniciativas locais e regionais de cooperação transfronteiriça tem sido expresso o desejo de se evitarem as divisões entre Oeste e Leste, e entre Norte e Sul. A divisão Oeste-Leste nasceu, sobretudo, da diferenciação económica mais visível entre as duas partes durante a Revolução industrial. O Oeste europeu sempre considerou a sua contrapartida de Leste como mais atrasada, atribuindo a isso influências da maior proximidade do Oriente, um Oriente imaginado subdesenvolvido, promíscuo e estagnado. Como é bom ler e reflectir sobre Les Lettres persanes de Montesquieu (1721), as cartas em que visitantes persas dessa Europa iluminista comparavam o que aqui viam com os factos e costumes das suas terras de origem!

Louvando-se Pedro o Grande (1672-1725) da Rússia, por procurar colher as “luzes” da modernidade na Holanda e na Inglaterra, disfarçado em homem comum, para depois poder modificar a sua Rússia tradicional, surpreende que seja esquecida por muitos que se lhe deve a delineação convencional da fronteira leste da Europa nos Montes Urais, por proposta do seu cartógrafo Vassili Tatichtechev. Tal delimitação teve por fim alargar a área europeia para leste, para que a Moscóvia, núcleo central da génese do Império russo ficasse, efectiva e permanentemente, na Europa. Mais tarde, como corolário, o Cáucaso Grande foi escolhido como limite sul do Império, deixado o Cáucaso Pequeno para a Ásia otomana.

Depois de Pedro o Grande foi Catarina II (nascida alemã, com o nome de Sophia Augusta von Anhalt-Zerbst, 1729-1796) quem mais fez pela continuação da modernização da Rússia. Mas é curioso verificar que nem ela, no seu longo projecto de nova constituição para a Rússia, nem Voltaire, o seu admirador e correspondente epistolar durante muitos anos, na obra minuciosa Histoire de l’Empire de Russie sous Pierre le Grand (1762), fizeram referência à fronteira dos Montes Urais. Catarina, por exemplo, limitou-se a reafirmar que a Rússia era parte da Europa e que o império se estendia entre 32 º e 165 º de longitude.

Desde Pedro o Grande a cadeia dos Montes Urais, de fraco relevo (pouco mais desde 1850 m no sector subpolar, simples colinas na estepe caucasiana), em contraste com as estepes que a rodeiam, ficaram perpetuados como o limite leste da Europa. Mas, ainda que tivesse havido alterações posteriores, continua a discutir-se qual a melhor delimitação. Nos anos de 60 Charles de Gaulle falaria na “Europa do Atlântico aos Urais”, e nos anos de 90 Mikhail Gorbachov utilizá-los-ia ao referir-se à “nossa casa comum europeia”.

A procura de um limite leste da Europa, que a separe da Ásia maciça, da qual parece ser uma grande península, demasiado recortada, vem de longe. Até à Renascença, esteve em voga o contraste clássico entre o Sul, das grandes civilizações mediterrânicas, grega e romana, e o Norte, dos bárbaros germânicos e outros. Contudo, o desenvolvimento renascentista e depois o iluminista passaram a relevar o contraste entre o Ocidente e o resto. Juntem-se a isto os pontos de vista antagónicos das elites bizantinas, que tinham o seu Império como mais civilizado, e das elites Ocidentais que, em contrapartida, viam os outros como “bárbaros”, “cruéis”, “incivilizados”.

Durante séculos esta diferença entre o Ocidente e o Oriente influenciou políticos, académicos, escritores e artistas plásticos, viajantes ocidentais. Para Mark Twain, o Oriente começava nas ilhas selvagens dos Açores; para John dos Passos, em Ostende, porque foi aí que apanhou o Expresso do Oriente; para Alexandre Dumas, nos Balcãs e na Grécia; o conde Drácula, de Bram Stoker, era um híbrido de ocidental e oriental.

E é incrível que a Cortina de Ferro tenha sido tomada como uma continuação dessa dicotomia. Ao historiador Tony Judt não escapou isso quando, a propósito dos acordos de Ialta (Churchill, Roosevelt e Estaline), escreveu o seguinte:

“na imaginação intelectual e política ocidental reconstruir a Europa depois de 1945 tornou-se sinónimo da criação de coesão económica e social entre os aliados ocidentais, tendo em vista a reconstrução da Europa ocidental (…) As ‘terras entre’ o ocidente e o leste entraram em limbo cultural e sob tutela política russa” (T. Judt, Postwar. A History of Europe since 1945. Nova Iorque, The Penguin Press, 2005; Londres, Pimlico, 2007).

Sobre essas “terras entre” alguns escritores checoslovacos registaram testemunhos sofridos. Milan Kundera, celebrizado pelo seu romance A Insustentável leveza do ser, num ensaio de 1983 escrevia o seguinte: um pedaço do “Ocidente latino caiu sob a dominação russa” e ficou “geograficamente no Centro, culturalmente no Ocidente e politicamente no Leste”, qualificando o Centro como uma comunidade de pequenos grupos étnicos diferentes num espaço reduzido delimitado por fronteiras culturais. Ainda segundo M. Kundera, o Centro ficara entre a Europa de leste, personificada numa Rússia ortodoxa, pan-eslávica, que perdera dois momentos definidores da modernidade europeia, isto é, a Renascença e o Iluminismo, e a Europa de oeste do pós-guerra, “barbarizada” pelas influências políticas e culturais norte-americanas (M. Kundera, “Un Occident kidnapé ou la tragedie de l’Europe centrale”. Paris, Le Débat, 1983, 27, pp. 3-22).

Em palavras de outros escritores da mesma origem encontram-se, igualmente, a negação de pertença ao Leste ou ao Ocidente, afirmando-se do Centro.

Ainda que assim seja, a tendência é para se criar uma identidade europeia, que se sobreponha às identificações particulares, locais e regionais, sem que isso signifique a utopia do apagamento total de fronteiras. Naturalmente que desde há muito estão ultrapassadas as aspirações de Victor Hugo quando, em 1869, num discurso proferido na sessão de abertura do Congresso da Paz em Lausana, dirigindo-se aos “cidadãos dos Estados Unidos da Europa”, uma república federal, proclamava que a primeira necessidade do homem, o seu primeiro direito, o seu primeiro dever era o da Liberdade. Mais acrescentava que, para isso, entre outras coisas, era necessário acabar com “la première des servitudes, la frontière”, porque “qui dit frontière dit ligature”, donde o lema “coupez la ligature, effacez la frontière, ôtez le douanier, en d’autres termes, soyez libres: la paix suit!” Referia-se ainda à unidade da moeda, à unidade do idioma (claro que o francês), à “fusão da nação na Humanidade (V. Hugo, “Discours d’ouverture du Congrès de la Paix, Lausanne 14 Septembre 1869”. Le Rappel de 15 de Setembro, e em Actes et Paroles II. Paris, Michel Lévy frères, 1875 e várias edições posteriores).

O desejo de uma Europa unida vem de muito longe. Sejam recordados alguns exemplos, de forma muito breve, retirados, na sua maior parte, de Achille Elisha, Aristide Briand. La Paix mondiale et l’Union Européenne. Paris- Groslay, Ivoire-Clair, edição revista, 2003). Assim, logo no início do século XIV, Pierre Dubois defendia a formação de uma comunidade internacional que constituísse a esperança senão de uma paz eterna, pelo menos de uma ordem jurídica capaz de diminuir a frequência das guerras, e no século XV é de assinalar o projecto de federação europeia apresentado por George Podiebrad, rei da Boémia, mas elaborado pelo seu conselheiro Antoine Marini, sobretudo com o fim de defesa contra a ameaça de invasão turca.

No século XVII, Maximilien de Béthune, senhor de muitos títulos mas historicamente mais conhecido como Duque de Sully, nas suas Mémoires des sages et royales oeconomies d’estat, politiques et militaires d’Henry le Grand …., referindo-se a Henrique IV, também preocupado com a paz na Europa e sobretudo a sua defesa contra a ameaça turca, propunha uma “república cristianíssima” formada por seis federações regionais, cada uma delas com a sua sede ou capital (Nuremberga, Viena, Bolonha, Constança), salvo a sexta (França, Espanha — sem indicar Portugal —, Grã-Bretanha e as Províncias Unidas) sem indicação de sede. Por detrás das boas intenções universalistas de tal república, são manifestas a reacção do soberano francês contra a ideia de “monarquia universal” assumida pelos Habsburgos e a divisão da Europa em grupos regionais favoráveis aos interesses da política internacional da França.

Ainda no mesmo século, em 1693, William Penn, quaker londrino e legislador na Pensilvânia, terá sido um dos primeiros a exprimir ideias claras que, reportadas ao nosso tempo, podem ser tidas como suficientemente modernas, sobre a organização de uma federação europeia, num ensaio para a paz presente e futura da Europa. E é interessante sublinhar que incluía um Parlamento europeu em que a língua oficial seria o francês, dada a sua importância cultural na época.

Entre os que são considerados discípulos do Duque de Sully, uns mais favoráveis às suas ideias, outros menos, contam-se, no século XVIII, Charles-Irénée de SaintPierre, o Abade de Saint-Pierre, com o seu volumoso projecto para a paz perpétua na Europa, datado de 1713 (com referências a Portugal), o ano da assinatura do Tratado de Utreque, Voltaire e Jean-Jacques Rousseau, revelando este, nas suas ideias sobre a federação, influências de Saint Pierre.

Nos finais do mesmo século, o septuagenário Emmanuel Kant, no seu opúsculo À Paz perpétua (Zum ewigem Frieden), de 1795, baseado na sua fé de que a razão tem mais força do que o poder, ainda que duma forma subtil, não deixa de apontar para a necessidade de um contrato dos povos entre si, para uma federação de Estados livres sob a forma de “uma aliança de paz de um tipo particular”, uma foedus pacificum, “diferente do tratado de paz”, o pactum paris, pelo qual se comprometiam a acabar com todas as guerras. Tal associação não traria qualquer dominação sobre os Estados pois visaria a assegurar e a respeitar as respectivas liberdades. Adiantava ainda a ideia do direito da posse comunitária da superfície da Terra.

Nos meados do século seguinte o escritor e político Alphonse de Lamartine, numa altura em que ocupava os cargos de Presidente de um governo republicano provisório e de Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 1848, lançava um Manifeste à l’Europe, no qual convidava os agentes diplomáticos a tomarem por guia a frase “O mundo e nós, queremos marchar para a fraternidade e para a paz”, e declarava o desejo de que a França fosse vista como promotora de alianças e de amizade com todos os povos.

Em 1848 a Europa foi assolada por muitas revoluções (em Palermo; várias em Paris; também em Viena, Berlim, Milão, Parma, Varsóvia, Praga) e diversas guerras, em que Karl Marx e Friedrich Engels, depois de aderirem à Liga dos Comunistas, redigiram o Manifesto Comunista, e K. Marx o panfleto Salário, Trabalho e Capital, em que saíram os Princípios de Economia Política de John Stuart Mill. No ano seguinte Victor Hugo, no Congresso da Paz organizado por Mazzini, faria o discurso em defesa dos Estados Unidos da Europa, visionando um dia em que “a França, a Rússia, a Itália, a Inglaterra, a Alemanha, todas as nações do continente”, sem que perdessem as suas qualidades distintas, “se fundiriam numa unidade superior” e constituiriam a “fraternidade europeia”, tal como sucedera com a união da Bretanha, da Borgonha, da Lorena e da Alsácia à França.

Sempre com a preocupação da paz na Europa, mas de uma outra forma, Jean Baptiste André Godin, o criador dessa utopia social ligada ao movimento associativista que foi a implantação em terreno de La Familistère de Guise, na sua obra monumental Le gouvernement: ce qu’il a été, ce qu’il doit être et le vrai socialisme en action, de 1883, escrevia do seguinte modo: “a constituição dos Estados Unidos da Europa poderá, num futuro próximo, inaugurar a paz definitiva no continente”. Algumas das suas teorias foram introduzidas no Pacto da Sociedade das Nações. Pierre-Joseph Proudhon com La guerre et la paix e Du príncipe fédératif et de la nécessité de reconstruire le parti de la révolution …., de 1863, defende, de forma vigorosa, as suas ideias sobre a federação agrícola-industrial, a federação política ou descentralização e, como corolário destas, a Federação progressiva. Para ele, somente um pacto federal europeu permitiria conceber uma situação política que garantiria a paz e a segurança dos Estados em concordância com a justiça e a moral internacionais. Segundo as suas palavras, a Europa era grande demais para uma confederação única; teria de ser uma “confederação de confederações”. Nos Estados Unidos da Europa haveria três grandes potências descentralizadas (França, Inglaterra e Rússia) e várias federações de pequenos Estados, citando a germânica, a italiana, a helvética, a escandinava, a danubiana, a hispânica e a “cisrenana”, esta com a Bélgica, a Holanda, o Luxemburgo, Trèves, etc., e o Zuyderzee até Dunquerque e a foz do Mosela.

Nestas notas breves e incompletas da história das ideias para uma Europa unida não poderia esquecer Aristide Briand, a quem alguém já chamou de “peregrino da paz mundial e percursor da União Europeia”, causas porque tanto se bateu depois da I.ª Grande Guerra. No seu tempo, ninguém melhor do que ele soube exprimir, com clareza, o que tantos outros tinham visionado. Basta ler os seus memorandos e o discurso que proferiu em Genebra, a 5 de Setembro de 1929, perante a décima Assembleia da Sociedade das Nações, do qual se reproduz um excerto:

“Penso que entre os povos que estão geograficamente agrupados, como os povos da Europa, deverá existir uma espécie de laço federal… É este laço, Senhores, que eu quero esforçar-me em criar. Evidentemente, a associação agirá, antes de tudo, no domínio económico; é a necessidade mais premente. Creio que, neste domínio, se poderão obter êxitos. Mas estou seguro que, quer do ponto de vista político quer do ponto de vista social, será benéfico o laço federal, sem prejudicar a soberania de qualquer das nações fazendo parte duma tal associação”.

Posteriormente, com data de 1 de Maio de 1930, desenvolveu diversos temas num “Memorando sobre a organização de um regime de União Federal Europeia”, a que se seguiu outro, de 15 de Maio de 1931, “Sobre a crise económica europeia”. Tentava assim introduzir na realidade ideias que, até aí, tinham ficado confinadas no domínio da teoria. Infelizmente, as ideias de A. Briand embateram contra grandes dificuldades: a incompreensão de alguns sectores franceses, a reserva hostil de políticos britânicos e de fascistas italianos, o desprezo dos alemães de Weimar e depois dos hitlerianos.

Os textos de Aristide Briand, caracterizados pela clareza de ideias, de finura das análises, merecem ser lidos e reflectidos. Foi um lutador incansável em favor da paz mundial, mas tinha consciência das dificuldades, que registou da seguinte forma poética: “L’esprit de paix, / il faut le considérer comme une fleur d’humanité, / délicieuse mais fragile / à laquelle il ne faut porter aucune atteinte. /Elle est facile à fleurir. / Il serait facile de la faire mourir!” (Cit. em Achille Elisha, 2003). Aristide Briand morreu em 1932, sete anos antes do início de hecatombe ainda maior: a da guerra mundial de 1939 a 1945.

Escuso-me de entrar na história mais conhecida dos acontecimentos que tiveram lugar depois desta guerra, recordando apenas alguns factos: uma frase Winston Churchill, num discurso proferido na Universidade de Zurique, em 1946, “Devemos construir uma espécie de Estados Unidos da Europa”; no mesmo ano o encontro de Robert Schuman, Konrad Adenauer e Alcide de Gasperi em Colónia, para trocarem impressões sobre os fundamentos de uma Europa unida; a Declaração do primeiro, datada de 9 de Maio de 1950, considerada como o acto de nascimento do que viria a ser a União Europeia, elaborada com o seu conselheiro e amigo Jean Monet; a ideia degaulliana de uma Europa de Nações associadas numa espécie de confederação, guardando cada uma a sua especificidade, o seu carácter particular, as suas fronteiras, as suas leis e a sua nacionalidade. Neste sentido, o Plano Fouchet assumiu-se como um “projecto de tratado definindo, sob o nome de União de Estados, as bases reais de uma Confederação aberta ao futuro”.

O desígnio da União Europeia é o da integração através da cooperação, que transcenda as divisões políticas, económicas e culturais, as tensões sociais e os potenciais conflitos de interesses. Nesse sentido, tem desenvolvido programas europeus de vizinhança, programas de parcerias que permitam avançar melhor com o projecto da união pacífica e voluntária de países tão diferentes. A União Europeia insiste em que os alargamentos não significam divisões novas na Europa, mas os processos de inclusão e de exclusão, as restrições de vistos de entrada a cidadãos de países que não fazem parte do clube, ou de países de outros continentes sugerem a construção de uma “fortaleza Europeia” que acaba por dividir, efectivamente, a Europa.

Os alargamentos mais recentes têm sido alvos de críticas de pessoas responsáveis.

Em Junho de 1996, Jacques Delors, numa sessão de Relações Exteriores do Conselho Económico e Social, de 4 de Junho, enumerava cinco desafios, que sintetizo do seguinte modo: aumento acelerado do número de Estados-membros; as suas diversidades históricas e culturais; factores económicos (competições no mercado comum e com mercados externos); factores financeiros (dificuldades orçamentais da União Europeia); e razões políticas. Quatro anos depois a mesma personalidade criticava a estratégia dos alargamentos:

“O nosso dever histórico é o de reunificar a Europa e, portanto, o de abrir os braços a países que são tão europeus como nós, mas sabemos que, à luz de alargamentos precedentes, arriscamos diluir o projecto. Por isso é essencial que se distingam estratégia geopolítica e estratégia puramente política (…) É errado pensar que o que resultou bem do alargamento de 6 para 9, depois para 12, pode servir para o alargamento para 27 ou para 30” (J. Delors, em Le Monde. Paris, 19 de Janeiro de 2000).

No ano seguinte, Valéry Giscard d’Estaing, numa sessão aberta ao conjunto de deputados e à imprensa na Assembleia Nacional, a 23 de Outubro, afirmava praticamente o mesmo, acentuando o erro de ter havido alargamentos sem que antes tivessem sido reformadas as instituições europeias e reformuladas as suas práticas de procedimento (V.G. d’Estaing, Compte-rendu n.º 159, 23 de Outubro de 2001). E ainda mais tarde, Gérard Onesta, o Vice-Presidente do Parlamento Europeu, denunciava, numa longa carta de 2005, a degradação do equilíbrio financeiro desde os anos 80 e das relações administrativo-financeiras no “triângulo institucional” — Conselho da Europa, Comissão e Parlamento (G. Onesta, in “Les perspectives financières. Carré Europe”, n.º 12, 2005).

Enquanto alguns elementos da política da União Europeia trabalham no sentido da melhoria da cooperação e relações transfronteiriças, outros agem contrariamente. Julga-se necessária uma agenda voltada para a segurança das fronteiras e implementação de regimes selectivos, bem como de proteccionismo económico básico, e medidas mais realistas de incentivos para a cooperação e a inclusão. É claro, ainda, que sejam modificadas as percepções de fronteira e de cooperação transfronteiriça, desafectadas de possíveis acontecimentos geopolíticos sobreponíveis, que reflictam os problemas de tempos e processos de integração e alargamento da União.

Vários projectos da União têm-se centrado nos significados de fronteira e cooperação transfronteiriça, como o EXLINEA e o EUROBORDER IDENTITIES. Os seusresultados indicam que as regiões de fronteira são caracterizadas, muitas vezes, por uma forte identidade local baseada nas relações nós-e-eles. A questão de saber se essas regiões podem funcionar como laboratórios de cooperação e/ou de formação de comunidades supranacionais permanece um problema importante, tendo em conta que esta forma de regionalização constitui um elemento chave na pretendida transformação da Europa das nações em Europa das regiões. Permitam-me aqui um parêntesis para recordar, muito sumariamente, algumas definições de base para termos diferentes, mas que na linguagem corrente se utiliza somente como “fronteira”.

A linha geométrica de delimitação da soberania de Estado (transcrita nos mapas) diz-se raia; às faixas estreitas de terreno de um e doutro lado da raia (terra de ninguém), constituem a fronteira; as áreas ou territórios mais amplos, com populações fixadas e actividades humanas representam as regiões de fronteira; e a delimitação unilateral de um espaço, feita geralmente pelo Estado para fins especiais (segurança, defesa, etc.) é a barreira.

Dada a simultaneidade de discursos e dinâmicas de inclusão e de exclusão que caracteriza muitas regiões de fronteira, a qualidade da cooperação dependerá, em larga medida, do papel assumido pelas partes regionais interessadas e/ou as elites políticas na promoção de uma identidade regional. Contudo, a qualidade das mensagens depende ainda de práticas que operam a vários níveis espaciais e diferentes domínios sociais. Os estudos anteriormente referidos têm contribuído para que as fronteiras sejam entendidas como instituições multifacetadas, mais do que simples marcadores da soberania de Es-tado. Daí a presença de especialistas das ciências naturais e das ciências sociais e humanas nas equipes dos projectos de investigação.

Presentemente ainda não há uma teoria simples, um conceito único, ou um discurso generalista sobre fronteira que gozem de predominância no contexto europeu. Os estudos estão mais orientados para as práticas de cooperação transfronteiriça e construção regional. O historiador Liam O’Dowd, em publicação de 2003, afirmaria que “uma das lições a tirar da história da formação do Estado na Europa é que a estrutura, as funções e o significado da fronteira raramente permanecem fixas ou estáveis durante longos

períodos de tempo”. Neste contexto histórico de mudança, o projecto europeu pode ser visto como a reconfiguração da fronteira em termos que até podem ser os de “barreira” ou de “ponte”, sem esquecer a qualidade multivariada das relações transfronteiriças. A heterogeneidade é a regra, a generalização de processos nem sempre é fácil de justificar (L. O’Dowd, “The Changing Significance of European Borders”, in J. Anderson, L. O’Dowd e T.M. Wilson, New Borders for a Changing Europe. Cross-border Cooperation and Governance. Londres, Frank Cass, 2003, pp. 13-36).

Como o desígnio político e social da União Europeia é o de continuar com os alargamentos, é imperativo o aprofundamento da estratégia alternativa de parcerias como mecanismos integrativos, que poderão substituir a estratégia actual de candidatura e adesão plena. Os problemas da União ganham outro relevo quando se tem em conta que o Projecto Europeu transcende em muito outros projectos geoeconómicos e geopolíticos, como da NAFTA, do MERCOSUL, da SADC, da ASEAN, e que o modelo de tal União, ainda que com reconhecidas deficiências, já desborda para outros continentes.

Através de instrumentos da sua Política Europeia de Vizinhança entrou na África do Norte, nos países magrebinos, com os quais assinou o Processo de Barcelona em 1995, renovado em 2005. Reconhecia-se assim que o Mediterrâneo, berço de várias civilizações, não era o Mare nostrum, somente europeu, mas que pertence também à África e à Ásia. Um dos aspectos mais relevantes do Barcelona I e II é o lugar primordial dado ao “diálogo intercultural”, definido como “questão crucial”, defendido como o modo de se “pôr termo ao perigoso mito do ‘choque de civilizações’”, nas palavras de Betina Ferrero-Walder, Comissária para as Relações Externas e Política de Vizinhança da União, em discurso proferido na Biblioteca de Alexandria, em Maio de 2006.

Aliás, em 2004 os Primeiros-ministros de Espanha e da Turquia, José Luiz Zapatero e Recep Erdogan, já tinham elaborado um memorando intitulado “Aliança de Civilizações”, apresentado na Assembleia Geral das Nações Unidas em Setembro e comunicado à Liga Árabe em Dezembro do mesmo ano. A Comissão Europeia interessou-se pelo assunto e a 5 de Outubro de 2006 determinou que 2008 fosse o “Ano Europeu do Diálogo Cultural”, reservando uma verba de 10 milhões de euros para desenvolvimento do programa.

Proximamente, em Lisboa, durante a Presidência portuguesa da União, é de esperar que se reúna a primeira Cimeira da União Europeia e da União Africana, esta a herdeira recente da Organização da Unidade Africana, reformulada muito à imagem da Europeia. Prevêem-se futuros alargamentos na Europa, pois perfilam-se países balcânicos e poderão regularizar-se as entradas da Noruega, da Islândia, da Suíça e dos microestados (Andorra, Mónaco, etc.); perspectivas quanto à Turquia e quiçá à Rússia; parcerias de boa vizinhança com Estados próximos, da Eurásia (Bielorrússia, Ucrânia e Moldávia, e os caucasianos Geórgia, Arménia e Azerbaijão), e também na África do Norte — são motivos de inquietação.

O então Cardeal Joseph Ratzinger, em 2002 e 2004 abriu conferências suas com as seguintes questões: “A Europa, mas o que é exactamente a Europa? Onde começa e onde acaba a Europa?” (J. Ratzinger, Europa. Os seus fundamentos hoje e amanhã. Lisboa, Paulus Editora, 2005). Muito antes dele, já outros, historiadores, sociólogos e geógrafos, tinham feito perguntas idênticas. Em 1987, Edgar Morin qualificara-a como “uma noção incerta, (…) de fronteiras vagas, de geometria variável, sofrendo deslizamentos, rupturas, metamorfoses”, e acrescentara que os europeus cometeriam um erro se fossilizassem essas fronteiras (E. Morin, Penser l’Europe. Paris, Gallimard, 1987).

Algumas resoluções das instituições europeias não ajudam ao esclarecimento sobre os limites geográficos da Europa. Darei apenas dois exemplos. Em 1961, a ilha geograficamente asiática de Chipre, localizada na bissectriz do ângulo formado pelos litorais da Turquia e da Síria, foi aceite pelo Conselho da Europa como parte dela, com base numa interpretação dos artigos 3.º e 4.º da Carta dessa instituição: “Todo o Estado europeu considerado capaz de se conformar com as disposições …, pode ser convidado pelo Comité de Ministros a tornar-se membro do Conselho”. A parte sul da ilha (cipriota grega) acabou por constituir um Estado independente, já admitido na União Europeia; a parte norte (cipriota turca) terá de aguardar a decisão última sobre a adesão da Turquia. Em 1992, as jovens repúblicas eurásias caucasianas da Geórgia, da Arménia e do Azerbaijão também foram aceites pelo mesmo Conselho, “em razão dos laços culturais com a Europa (…) Têm a possibilidade de pedir a sua adesão na condição de indicarem claramente a sua vontade de serem considerados como fazendo parte da Europa” (Documento 7103 da Assembleia Parlamentar do Conselho Europeu, de 10 de Junho de 1992).

A fronteira leste da União Europeia é representada por 11 países — Finlândia, Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, Eslováquia, Hungria, Roménia, Bulgária e Grécia — a maior parte dos quais esteve subordinada à União Soviética, por detrás da Cortina de Ferro. Encostados a eles estão a Rússia, a Bielorússia, a Ucrânia, a Moldávia e a Turquia (só esta não foi soviética). Interessante referir a recorrência histórica de países que, em dada altura, ficam de serviço como amortecedores entre dois blocos fortes. São os casos da Bielorússia e da Ucrânia, e de certo modo da Moldávia entre o bloco da União Europeia e o da Federação Russa, o primeiro uma superpotência em contínua afirmação, o segundo também uma superpotência, ainda que com dificuldades resultantes da implosão do antigo Império Soviético.

Depois da entrada na União, as regiões de fronteira sofreram mudanças significativas. Com o fim da confrontação bipolar EUA-URSS, alteraram-se os condicionamentos geopolíticos, redefiniram-se as relações exteriores, estabeleceram-se novas alianças, modificaram-se os sistemas económicos, os sistemas sociais e de ensino, etc., enfim, as leis do país, tudo pelo facto da submissão às directrizes de Bruxelas. Quem se segue? A Turquia que há muito é candidata, membro antigo da OTAN, predominantemente muçulmana, com cerca de 70 milhões de habitantes, mas apenas 3% do território na Europa (o resto na Ásia)? Os países “amortecedores”, isto é, a Bielorrússia pró-Rússia e a Ucrânia pró-União Europeia? A própria Federação Russa, ainda imperial, com cerca de 77% do território no norte da Ásia? Os caucasianos, dois a cavalo da fronteira eurasiática (a Geórgia, com 30% do território na Ásia, e o Azerbaijão, islâmico, com 54%) e um totalmente na Ásia, isto é, a Arménia?

… e pur si muove! Quo vadis União Europeia?

FIM

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