A teologia de Jesus | por JOSÉ BRISSOS-LINO in Revista Visão 16.02.22 | sobre texto de Viriato Soromenho Marques

Se um dia boa parte dos teólogos e das igrejas cristãs tiverem a coragem de se centrar efectivamente no discurso e obra do Mestre de Nazaré, deixando de lado o corpo das respectivas tradições, terão um choque ao verificar quão distantes se encontram daquilo a que podemos chamar a teologia de Jesus.

Grande parte das atuais controvérsias no campo religioso cristão, mas também das tensões entre este e o mundo secular relacionam-se com aquilo que S. Paulo denomina “preceitos e doutrinas de homens”: “As quais coisas todas perecem pelo uso, segundo os preceitos e doutrinas dos homens. As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne” (Colossenses 2:22,23). Com efeito, o que os textos neotestamentários nos fornecem relativamente tanto à palavra como à ação do Cristo dos evangelhos, parece ir em contramão com a pregação, os preceitos e a praxis do cristianismo como o conhecemos, nas suas diferentes versões.

Em obra recentemente publicada (“A Teologia de Jesus: Tudo o que o Mestre falou”, Lisboa: Ed. Univ. Lusófonas, 2021) e que Viriato Soromenho Marques me deu a honra de prefaciar, procurei abordar a questão, com apoio de um esforçado colaborador nesta investigação (Vitor Rafael).

O desenho da pesquisa foi simples, proceder ao levantamento exaustivo de tudo quanto é discurso directo de Jesus Cristo, a partir dos evangelhos canónicos, organizando-os depois por temáticas, que foram posteriormente agrupadas por três grandes áreas: doutrina, ética e espiritualidade, dando-lhe um tratamento estatístico. Tal desiderato permitiu tomar consciência tanto das grandes ênfases do seu pensamento, como das matérias menos referidas ou mesmo ausentes do seu discurso.

Tal como Sócrates, Jesus foi um homem essencialmente da oralidade. Não deixou nada escrito pelo que a maneira de conhecer o seu pensamento será através do que outros escreveram sobre ele, do que afirmou e do que realizou, tal como Platão e Xenofonte fizeram com o seu mestre. É, portanto, a partir daqui que vamos encontrar a base seminal da fé cristã. De resto, não há ato de culto cristão que não se procure reportar aos textos bíblicos, como forma de afirmar uma dimensão autoritativa da fé, considerando-a “palavra do Senhor”.

Daí ter-se procurado na reflexão presente nesta obra deixar deliberadamente de parte a produção teórica dos teólogos e focar apenas nos textos bíblicos, tal como expliquei aos leitores: “Um homem íntegro escreve e fala aquilo que pensa, com a vantagem de, numa cultura da oralidade, a expressão oral ser talvez ainda muito mais fiel aos pensamentos, sentimentos e emoções, porque não permite um tempo de reflexão para rever, retificar ou reformular”. Aliás, Fernando Pessoa dizia que “a palavra falada é um fenómeno social, a escrita um fenómeno cultural; a palavra falada um fenómeno democrático, a escrita um fenómeno aristocrático”.

Embora a teologia e a tradição multisecular ajudem a retratar a forma de entender a fé em cada momento da sua história, não deveriam substituir-se à fonte. Afinal o fundador do cristianismo foi Jesus de Nazaré e não qualquer teólogo histórico ou contemporâneo, por mais excelente que tenha sido ou seja o seu pensamento. Como diz Roldán: “por mais perspicácia que tenha o teólogo, jamais conseguirá conhecer em toda a sua dimensão a eterna sabedoria de Deus. Seu conhecimento será verdadeiro porém limitado”.

O mesmo se aplica aos escritos apostólicos aos quais não podemos atribuir o mesmo nível de autoridade que se atribui às palavras saídas da boca do próprio Jesus ou à sua praxis. Mas é quase sempre a partir dos textos bíblicos alheios à figura de Jesus Cristo que se elaboram os constructos doutrinários que servem de base para diversas posições disruptivas, apresentadas como modo de afirmação e como marcas identitárias de cada grupo religioso. Como se a figura de Jesus fosse apenas uma inspiração geral, etérea, que depois vem a ser contrariada pelas bases de fé elaboradas e pelas propostas que surgem à vista, originadas por certos exageros hermenêuticos praticados por muitas instituições religiosas contemporâneas.

De acordo com Soromenho Marques: “Muito mais do que um assunto confessional, neste livro procura-se contrariar, no seu tempo e modo próprios, a erosão do sistema imunitário cultural da nossa sociedade, exposto aos crescentes e mais ousados avanços da barbárie, sob todas as suas modalidades. Também por isso, o que este livro oferece aos seus leitores pode bem ser classificado como um generoso serviço público.”

Se um dia boa parte dos teólogos e das igrejas cristãs tiverem a coragem de se centrar efetivamente no discurso e obra do Mestre de Nazaré, deixando de lado o corpo das respetivas tradições, terão um choque ao verificar quão distantes se encontram daquilo a que podemos chamar a teologia de Jesus.

O mais chocante é que algumas das grandes bandeiras de setores do cristianismo contemporâneo não encontram qualquer suporte na praxis nem no discurso do Mestre de Nazaré. No âmbito da ética há até matérias em que não se encontra sequer uma única referência ao pensamento de Cristo nas páginas do Novo Testamento e que, apesar tudo, são utilizadas para desenvolver uma verdadeira guerra cultural na sociedade.

Além disso há ainda o erro de falar sem ouvir. A propósito das “teologias que não escutam” diz-nos Fabrício Veliq: “É imprescindível que o cristianismo compreenda que não há escuta sincera se não há humildade e que não se alcançam pessoas sem a disposição de ouvi-las com atenção”. De facto, foi exatamente isso que Jesus fez com o líder religioso Nicodemos, com a samaritana de Sicar, com o cobrador de impostos Zaqueu, em Jericó, com os discípulos a caminho de Emaús e com tantos outros.

Ser um discípulo de Jesus Cristo começa pela condição de desenvolver e manter a capacidade de escuta do mundo à nossa volta, tendo em conta muito em particular aqueles que sofrem, no sentido de lhes proporcionar a esperança que é característica primeira do reino de Deus e não de os condenar, em especial quando o fazemos com base em “preceitos e doutrinas de homens”.

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José Brissos-Lino

Doutorado em Psicologia e Especialista em Ciência das Religiões; Diretor do Mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona; Coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo; Director da revista teológica AD AETERNUM; Investigador do CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias – Universidade de Lisboa) e do CIPES (Centro de Investigação em Política, Economia e Sociedade – Universidade Lusófona). Desenvolve há muitos anos intensa atividade em instituições culturais, humanitárias e de solidariedade social, algumas das quais fundou. Poeta e ficcionista.

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