Por Nuno Ramos de Almeida, publicado em 4 Fev 2012
Antonio Negri, conhecido por Toni Negri, é um pensador e activista italiano. É autor de uma vasta obra em que o pensamento político radical se mistura com a filosofia de Espinosa. Foi dirigente da organização de extrema-esquerda Poder Operário. Esteve preso. É nome cimeiro da corrente marxista autonomista.
Num dos seus muitos livros, Antonio Negri fala de Kairòs, o momento em que Deus toca na história; este filósofo italiano que nasceu em Pádua em 1933 já viu muitas vezes a história ser feita. E pagou o preço por isso. Acusado, por “arrependidos”, de ser o mentor ideológico das Brigadas Vermelhas, esteve preso. A Itália assustada com o terrorismo de extrema-direita e de extrema-esquerda precisava de exorcizar os seus fantasmas, mesmo que isso significasse acusar falsamente. Tem uma vasta obra escrita, em que se destaca, depois da sua libertação da prisão, “O Império”, escrito com o norte-americano Michael Hardt. Esteve em Lisboa para falar de manifestações e dos novos manifestos que aí vêm.
A crise a que assistimos hoje é uma crise normal ou é uma crise extraordinária que pode levar a uma ruptura?
É uma crise ligada a uma transformação profunda da ordem política, das condições tecnológicas da produção, e sobretudo devida à globalização. É este processo que está na base da crise, mas sem as transformações tecnológicas a globalização financeira não teria sido possível. Sem a forma como se trabalha a informática e a comunicação, a mobilidade e a flexibilidade de todas as forças produtivas seriam impossíveis. A globalização económica e a transformação informática são as duas faces de uma mesma moeda. Esta mutação é acompanhada pela passagem ao capitalismo financeiro em que o capital financeiro se torna o veio fundamental da globalização. É em torno da finança que se organizam os mecanismos de comando desta sociedade globalizada. Esse processo não se faz sem problemas. A transformação do universo financeiro dá aos mercados a possibilidade de mudar as estruturas políticas. Assistimos ao declínio relativo soft, mas real, da potência norte- -americana e ao nascimento de uma nova polaridade: a China. E ao mesmo tempo à crise do bloco europeu. Tudo isso contribui uma crise que é global.
Mas é uma crise profunda?
É uma crise muito profunda, extremamente profunda. No caso da Europa, ela não é capaz de gerir com uma organização adequada as transformações políticas inerentes à globalização. Não tem instrumentos políticos que lhe permitam defrontar a crise global, e por outro lado há uma crise financeira. Nesse campo, as instituições e os instrumentos financeiros europeus não foram capazes de resistir à pressão anglo-americana. E isso é perigoso porque as tornou integradas com as práticas dos capitalistas americanos que desencadearam a crise. Temos portanto uma crise que é provocada, em certa medida, por nós mesmos, europeus, que não conseguimos sair desta crise. Estou muito pessimista.
Está em Lisboa para participar numa iniciativa internacional sobre manifestações e manifestos. Observamos na Europa e no mundo um tempo de emergência de tumultos e de revoltas. Acha que elas podem ter sentido e conduzir-nos a uma modificação estrutural da situação? O seu amigo Slavoj Zizek costuma dizer que um dos problemas desta época é que acreditamos mais na possibilidade de uma catástrofe ou de uma invasão alienígena que na simples possibilidade da mudança de um modo de produção…
A questão posta nestes termos pode ter a mesma resposta que deu Zizek. O problema é que talvez os termos da proposição não estejam correctos. As pessoas são diferentes daquilo que a gente imaginava. Hoje a transformação das classes subalternas, que são aquelas que teriam interesse numa revolução, são extraordinariamente profundas. Há uma ligação cada vez mais plena, pelo menos nos países desenvolvidos, entre o velho proletariado e uma classe média enormemente empobrecida. E isso determina dificuldades profundas, de linguagem e de instrumentos de comunicação em torno dos protestos, mas sobretudo de projecto. Mas há elementos revolucionários em si: a indignação, e não falo especificamente do movimento dos indignados, e a consciência cada vez mais profunda e forte de que a ordem democrática inventada no século xviii e concretizada de uma forma global após a queda da União Soviética não é qualquer coisa que se possa confrontar com a ordem mundial que agora se impôs. Há uma crise política que alimenta reflexões e movimentos extraordinariamente poderosos. A crise está lá: à direita e à esquerda. A crise da representação política está presente em toda a Europa.
Em Itália temos o governo dos tecnocratas…
Em Itália atingiu-se o grotesco. É sempre assim, os italianos são sempre demasiado inteligentes de forma que conseguem sempre fazer as coisas na forma pior. É evidente em Itália que a democracia já não existe. O que sobra é uma espécie de ditadura comissária, como se define nos tratados que eu estudava quando era jovem. Percebia-se, lendo Friedrich Carl, que a ditadura romana não era igual a uma ditadura como a de Mussolini, mas era um regime que procurava a ordem do bem-estar de uma nação, através da entrada de uma vontade exterior na resolução de uma crise anterior e interna.
Na sua obra põe o acento da mudança, não nas condições económicas existentes, mas na tradição do “operaismo” italiano, na acção de quem trabalha.
No “operaismo” damos mais importância ao movimento: mais importância ao trabalho vivo em relação ao trabalho morto e à condição institucional. Mas não esquecemos essa parte, até porque há sempre acção e resistência. Hoje estou convencido que o grande problema é que a relação entre acção institucional e realidade social é uma relação quebrada. Podemos retomar, num sentido diferente, a célebre fórmula de Mao de que “um se partiu em dois”. O problema não é somente dos proletários que têm dificuldades ou dos movimentos de indignação, é também criado pela nova ordem financeira. Há uma ordem financeira que movimenta muitas vezes mais capital que aquele que corresponde à produção de bens e serviços. Neste quadro, o keynesianismo já não funciona, não pode funcionar a nível nacional, e a nível global não tem interlocutores como os sindicatos. Tudo aquilo que representava a velha lógica fordista da produção não pode existir numa relação globalizada. Qual é a regra pela qual o capitalismo financeiro deseja desenvolver-se? Vivemos o risco de ver desencadear uma guerra. Nestas condições, em que não há uma saída objectiva para a crise, a guerra tornou-se uma possibilidade.
Uma guerra no Irão seria uma escapatória possível para a actual crise económica?
Não acredito que a guerra vá ser decidida porque há uma crise. Acredito que a crise pode determinar a guerra. A conflitualidade é sempre depois. Tenho medo. Vi no outro dia o primeiro-ministro israelita dizer que “a guerra estava muito longe”, logo os meus receios de que esteja próxima podem ser fundados [risos].
Nos seus trabalhos rompe com a lógica tradicional dos pensadores associados ao comunismo: a existência de uma classe de vanguarda e de um partido de vanguarda. Defende uma mudança que venha de baixo…
Já não há vanguardas da classe operária.
A pergunta que lhe queria fazer é como pode acontecer uma mudança de baixo feita por uma multidão de singularidades. Como pode uma massa de diferentes criar uma espécie de sentido para criar algo de novo?
É preciso ter atenção. Não é verdade que sejam todos diferentes. É verdade que a Primavera egípcia parece nada ter que ver com o movimento de Madrid e que a luta dos subúrbios de Paris ou de Londres nada têm que ver com o movimento do Occupy Wall Street, mas é também verdade outra coisa que é a existência de um efeito de imitação extremamente poderoso. E ao falar de efeito de imitação não estou a abordar alguma coisa de simbólico: os efeitos de imitação nas bolsas mundiais são elementos fundamentais para perceber a crise em que vivemos. Por seu turno, não podemos explicar os movimentos e as revoluções de 1848 sem abordar os efeitos de imitação, mesmo numa altura em que os meios de comunicação social eram embrionários, como não podemos explicar 1968 sem eles. Devemos por isso ser prudentes nessa análise. É verdade que a força de trabalho que era composta pelo proletariado se transformou radicalmente. Nisso entraram a comunicação e o conhecimento. A comunicação não é apenas que nós dois podemos comunicar. É o facto de nós dois podermos produzir juntos através da comunicação, da informação e do saber. Actualmente assistimos a um mundo em que há formas comuns que se foram consolidando. Por exemplo, o comum da dívida. Hoje em dia se fizermos uma análise de tipo humano da exploração, vai encontrar no cimo, não o homem explorado, mas o homem endividado. E o homem endividado está dentro de uma rede, e está numa rede que pode tomar consciência do peso da dívida e revoltar-se. Há outras redes, como a dos homens “mediatizados”, aqueles que são alienados da comunicação. Mas aqui também é possível ver instrumentos de comunicação que podem determinar uma subjectividade alienada transformar-se em forças enormes de revolta. E há o homem “securizado”. Todos os governos de direita fazem um apelo evidente a isso. A procura de segurança é uma necessidade que encontra campo nas pessoas perante uma insegurança crescente. Uma ordem mantida pelo medo. E há ainda o problema do homem representado, representado de que forma? Chegamos aos absurdos mais inimagináveis: a corte suprema americana deu a autorização de serem anónimos aos que contribuem com fundos para as campanhas dos candidatos. Significa que a riqueza enquanto tal assume o papel fundamental na escolha da classe dirigente. Entramos no reino da pura loucura.
Aparentemente, apesar do efeito de contágio, os movimentos produzem resultados diferentes: os indignados marcham por uma democracia real, a Primavera Árabe levou ao triunfo do fundamentalismo islâmico e o discurso da insegurança faz subir a extrema- -direita em toda a Europa…
Julgo que abordou aqui um problema fundamental que é a forma como podemos utilizar uma mesma situação. Como sabe, há, por exemplo, uma teoria que parte de Maquiavel que é democrática e há uma teoria que parte do mesmo autor que é contra as mudanças. O jogo está sempre aí. E é necessário saber jogá–lo. Estou extremamente pessimista, e não sobretudo pela sorte da herança de Maquiavel, mas pelo destino da humanidade (risos). Honestamente, hoje chegámos a um ponto em que, como dizia o velho Karl Marx, as forças produtivas e as relações de produção estão numa contradição profunda.
Mas essa contradição não tem aparentemente um sujeito histórico que a cavalgue.
Estou convencido que essa força é o trabalho cognitivo. As forças que trabalham na informação e na comunicação, não falo obviamente dos jornalistas [risos]. É, por exemplo, a luta nas universidades e a criação de uma nova subjectivação. Hoje os instrumentos não são os partidos. De direita ou de esquerda, os partidos estão completamente afectados pela crise da representação.
Defende que se devem recusar as eleições e a escolha de representantes democrática?
Para mim, vivemos um momento de existência de um poder constituinte que reinvente radicalmente as instituições que nos permitem viver juntos. Não sei quem as vais reinventar. Acho que não devemos resolver esse problema em Wall Street. O dinheiro deve assumir um poder constituinte ou são os de baixo que devem fazê-lo? Quem vai ganhar?
Em 2009, na sua intervenção no colóquio internacional sobre a ideia do comunismo, defendeu a multiplicação das acções da multidão contra o Estado, a vivência de uma militância comum e a criação de novas instituições…
É evidente que todo o movimento de subjectivação só pode partir de subjectividades que tenham mudado. As mudanças começam pela alteração da singularidade e é preciso fazê-las. Não há um qualquer partido comunista que as faça por nós. Eu venho de uma família de tradição comunista, em que vi gerações de pessoas decididas a fazer as coisas. Somente assim é possível produzir subjectivações que se tornem reais. Depois o problema é que de facto vivemos numa situação que é revolucionária. Mas dizer isso não significa que haja uma revolução. Quando Marx começou a escrever “O Capital”, em 1858, dizia “assistimos à crise mais bela”, era uma crise terrível, que lhe permite entender as leis exteriores ao capital, que são aquelas que decorrem da luta de classes. Estamos numa situação parecida, entramos num mundo novo, no qual ninguém sabe o que se passará. A consciência desta ruptura em que “um se dividirá em dois” está hoje presente.
Assistimos um pouco por toda a Europa à destruição das empresas públicas. No entanto, faz na sua obra uma distinção radical entre serviços públicos e bens comuns, tendo uma apreciação negativa daquilo que é público. Defende os serviços públicos neste contexto de destruição do Estado social?
Vou dizer-lhe claramente. Em Itália fizemos um referendo para impedir a privatização das águas. Foram 28 milhões de italianos que votaram contra a privatização da água, e neste momento o governo, com o apoio da Europa, decide privatizar a água enquanto nós, os 28 milhões, lutamos para que a água fosse um bem comum. Não só a água, mas tudo aquilo que existe em torno dela deve ser gerido de uma forma democrática. Há 28 milhões de pessoas que votaram isso e agora querem-nos impor uma água privada mascarada de pública. Considero que o público não é mais que uma garantia do privado. Hoje em dia o público não é mais que a manutenção da ordem pública para dar aos privados, numa relação de subordinação, os bens comuns e a exploração das coisas. O público foi sempre nas democracias capitalistas alguma coisa que servia os interesses privados. Parecia existir apenas numa outra correlação de forças, num tempo em que a revolução soviética e o medo da União Soviética, e as lutas de classes nos países ocidentais determinaram essa existência. Uma existência que era mais forte em nossa casa, porque estávamos mais perto dos soviéticos, e bastante menos forte no Texas, que estavam mais longe da União Soviética [risos].
Falava nos movimentos universitários, mas assiste-se em Portugal a um processo em que cada vez é mais caro estudar no ensino superior.
Por todo lado tanto vemos a privatização falir como trinfar. Estive no Chile, e aí há um forte movimento antineoliberal com uma fortíssima capacidade de subjectivação. Na América Latina assiste-se a uma verdadeira revolução nos últimos 20 anos. Esta irreversibilidade do caudilhismo, a ruptura da dependência económica com os países do Norte. No Brasil foi instituído o rendimento mínimo garantido. Eram coisas inimagináveis há décadas. Ontem estive com uns amigos e eles diziam que a Biblioteca Nacional portuguesa está quase sem dinheiro. E eu dizia-lhes: “Porque não pedem aos brasileiros?” A manutenção do património da língua portuguesa é também do interesse deles. E não é irrealista, mas se eu dissesse há 20 anos que o Brasil estava em condições de dar dinheiro a Portugal ninguém me acreditaria.
Em Portugal seria mais provável ser privatizado para os chineses comprarem [risos]…
Ai, também é necessário ser prudente. Nunca se sabe o que se passa na China. A definição do capitalismo chinês exige rigor. Ali o poder das empresas públicas é gigantesco. E é preciso perceber que toda a crise cíclica do capitalismo global, que nos engloba a nós e a eles, vai necessariamente repercutir-se na China e acerbar contradições. Até porque os chineses não são carneiros. São pessoas.
Há mais de uma década escreveu “o Império”, com Michel Hardt, e aí defendia que havia uma espécie de desaparecimento da soberania dos estados. Mudou de opinião com este recrudescimento das potências nacionais: as guerras dos Estados Unidos, o aparecimento da China, a imposição da vontade alemã na Europa, etc.?
Mudámos e não mudámos. É evidente que não houve uma constitucionalização do império, mas também é evidente que mesmo os poderes nacionais fortes, como a China e a Alemanha, estão completamente subordinadas ao mercado. E esse mercado não tem pátria, apesar dos esforços chineses e americanos. Dito de outra forma, o soft power americano é isso, é a transposição do poder político para o poder financeiro. Estamos a viver essa forma do declínio americano que é clássica: já se tinha passado em Espanha há séculos, aconteceu com o Reino Unido há uma centena de anos.
Pensa que é possível que os EUA percam a hegemonia político-militar?
Do ponto de vista militar isso é totalmente evidente. Os EUA perderam todas as guerras em que se têm metido. Não sei se têm a capacidade de vencer o Irão. Os israelitas também perderam a última guerra em que se meteram no Líbano. É preciso ser realista, eles não são a grande potência que as pessoas imaginam. Há 20 anos, quando escrevíamos “O Império”, tivemos conhecimento de um livro de Joseph Nye em que se falava do conceito de soft power. O autor era colega do Michael Hardt e ficamos fascinados pela sua tese, em que ele dizia com todas as letras que a grande potência americana tinha de certa forma terminado. Neste momento está a fazer lobbying em Washington a vender o presidente. Foi assim que passaram do governo à governança, e esta não se faz com os porta-aviões, mas com o poder financeiro e as agência de notação.
Participou em 2009 numa conferência internacional com o desafio de discutir uma nova ideia de comunismo. Nela estiveram presentes dezenas de pessoas, entre os quais Badiou, Rancière ou Hardt. Há uma convergência entre filósofos diferentes a este ponto?
Há grandes diferenças, mas isso não significa nada. Aquilo que é importante é que voltámos a conseguir estar juntos para falar do comunismo.
Há algum futuro numa palavra que nos dias de hoje está contaminada por regimes como a Coreia do Norte e a China?
Eu sou contra o estalinismo desde que nasci. Estive preso porque os comunistas italianos me deixaram ir para a prisão. Nunca joguei esta ambiguidade. Para mim a ideia de comunismo é a que tinham o meu pai e os meus irmãos, a vontade de construir uma sociedade em que a igualdade é fundamental, em que não haja patrões, sobretudo patrões idiotas [risos]. Eu nasci durante o fascismo. Tinha 12 anos quando o fascismo caiu e não foi bom viver nesses tempos.
Viveu grande parte do século xx e a sua transição para o xxi. Tem esperança?
Sou pessimista porque tenho medo. Vejo o que há, mas da outra parte sinto a potência deste século de reiventar, talvez não o comunismo, certamente não o comunismo soviético, mas o comum. É preciso reinventar as formas em que teremos a capacidade de nos dirigir a nós mesmos.
O classicismo e a transgressão
Miguel Real, in Jornal de Letras – 28-07-2010
A recente publicação de dois bons romances históricos, «Crónica do Rei-Poeta, Al-Mu’tamid», de Ana Cristina Silva (ACS), e Corja Maldita, de Pedro Almeida Vieira (PAV), vieram revelar quanto este género literário, não perdendo qualidades estéticas, se adapta e convive com diferentíssimas estruturas narrativas, sejam clássicas, sejam modernas (ou pós-modernas).
Com efeito, se a forma em que é vazado aduz um suplemento de interesse literário ao romance histórico, provocando no leitor, porventura, uma superior comoção estética, também é verdade que este tipo de romance, como o policial, vive sobretudo do seu conteúdo, isto é, da qualidade da história factual narrada. Neste sentido, os romances acima referidos são alimentados por um vivo manancial investigativo de fontes históricas e uma selecção de acontecimentos que lhe garantem uma qualidade acima da habitual no romance histórico português recente, que pulula (e polui) as estantes das livrarias.
Outra coisa não seria de esperar face à qualidade dos anteriores romances dos dois autores, de que destacamos, de ACS, «As Fogueiras da Inquisição» (2008) e «A Dama Negra da Ilha dos Escravos» (2009), e, de PAV, «Nove Mil Passos» (2004), «O Profeta do Castigo Divino» (2005) e «A Mão Esquerda de Deus» (2009).
Assim, se ambos os romances se assemelham quanto ao escrúpulo documental de verdade e ao rigor analítico dos acontecimentos, diferem fortemente, no entanto, quanto ao seu estatuto formal. «Crónica do Rei-Poeta, Al-Mu’tamid», sem se subordinar em absoluto à cronologia, é dotado de uma estrutura clássica, desenvolve a intriga em círculos concêntricos e opera uma ligação harmónica e umbilical entre o plano da história das taifas árabes no sul da Península Ibérica ao longo do século X e XI e o plano da fabulação sobre a vida de Al-Mu’tamid, de tal modo os entrelaçando e fundindo que se tornam indistinguíveis no corpo do texto.
ACS relança neste livro o seu habitual estilo reflexivo e explicativo, de evidente cariz psicológico, no qual, mais do que a descrição de costumes físicos e sociais pertinentes aos reinos árabes inimigos dos cristãos, sobrelevam características psicológicas, como a angústia e a autenticidade da existência.
Um evidente psicologismo é explicitado na relação de Al-Mu’tamid com o pai, com a memória do filho morto, na relação com os poderes organizativos das cidades (Sevilha, Silves, Córdova), na relação com o próprio Islão e com a necessidade de desbloqueamento dos radicalismos políticos, na relação com a poesia e com a morte.
Romance filosófico, nele preside a interrogação individual sobre o sentido da vida. Vocacionado para a espiritualidade poética, Al-Mu’tamid vê-se forçado a obedecer à força da hereditariedade, assumindo a realeza no tempo da investida para Sul de D. Afonso VI (avô de D. Afonso Henriques).
ACS integra com mestria este conflito psicológico, fulcro central e raiz da totalidade do romance, no conflito histórico da luta entre emires muçulmanos e os reis cristãos após o desmembramento do califado de Córdova em inúmeras taifas. De relevar que pela primeira vez ACS trabalha – e bem – com narradores masculinos, Al-Mu’tamid e o seu escravo, já que tanto nos dois romances acima referidos quanto em «Mariana, todas as cartas» (sobre Mariana Alcoforado, 2003), «A Mulher Transparente» (sobre violência doméstica, 2004) e «Bela» (sobre Florbela Espanca, 2005) os narradores são femininos e em «À Meia-Luz» (2006) o narrador é neutro quanto ao género.
Face ao romance de ACS, Pedro Almeida Vieira evidencia uma absoluta transgressão estética, uma verdadeira ousadia literária, intercalando a história factual da expulsão dos jesuítas de Portugal, Espanha, França e a extinção da Ordem de Jesus, relatada com o máximo rigor histórico, com capítulos fantasiosos intitulados «Interludium», descrevendo diálogos entre padre Gabriel Malagrida e o Diabo.
Acentuando a estranheza de «Corja Maldita», contesta-se nestes capítulos a versão histórica «oficial» da expulsão e extinção da Companhia de Jesus, não raro desmontando e desmascarando o que nos capítulos ordinários se acabara de afirmar.
Metaficção historiográfica que enuncia ficcionalmente as diversas interpretações possíveis sobre a extinção dos jesuítas, «Corja Maldita» intenta, assim, não se submeter à univocidade da ciência histórica. Digamos ser esta a primeira (mas não original) heterodoxia do romance.
A segunda inovação face à obra anterior do autor – uma verdadeira transgressão -, reside na abolição total da categoria de tempo por via da introdução, na página 159, do autor, ele mesmo, em carne e osso ficcionais (em conjunto com a alusão do verdadeiro narrador, o Diabo, «a um jovem e promissor escriba, aquele português nortenho de frases bombásticas contra as reticências» – valter hugo mãe, como é evidente), enviado especial a Madrid para relatar os motins acontecidos entre os dias 24 e 26 de março de 1766, seguidos do comentário jornalístico de Mário Ladeira Pevide e da reportagem de Valério Piedade Mira de 25 de março de 1767.
O que nuns capítulos se constitui como relato histórico torna-se, noutros, uma narrativa transhistórica, o narrador omnipotente de uns capítulos é contestado noutros, o autor é chamado a intervir, garantindo a veracidade dos factos, relatando-os em forma de reportagem e comentário jornalísticos, a integridade do tempo cronológico é violentada e, no final, lido o romance, tudo se conjuga e harmoniza, não ao modo transparente da leitura de um romance histórico clássico, subjugado à veracidade dos factos e à continuidade do tempo, mas segundo o prazer simultâneo da compreensão racional e da sensibilidade emotiva do leitor, que aceita integrar-se no jogo ficcional criado por PAV, isto é, penetrar no seio de uma arte lúdica que nada intenta provar senão manifestar-se como jogo. Eis o campo da estética.
Just when you thought that everything that could be said that was new, fresh, or unusual about the Beatles}’ later history was already out there, along comes The Beatles: Unplugged, a bootleg CD so good that the folks at Apple and EMI ought to be kicking themselves for not thinking of it first. This disc (which is sort-of subtitled “The Kinfaun-Session,” referring to George Harrison’s Esher home) pulls together the 23 songs that Harrison, John Lennon, and Paul McCartney recorded as works-in-progress at Harrison’s home in May of 1968. Most of what’s here was eventually heard either on The Beatles [White Album surfacing with new lyrics as &”A Jealous Guy,” etc.) or B-sides (&”What’s the New Mary Jane”), and on various bootlegs. What makes this presentation better than most is that it’s part of that “digipak” bootleg series that’s been coming out of Europe since late 2000 and generally knocking listeners out with its quality. The production here is a match for any legitimate release, not just in sound quality but also the care that went into the selection, order, and editing of the tapes; there’s some hiss here and there, to be sure, and a few tracks are close to overload on the sound, but there’s nothing here that will make you jump to lower the volume or skip to the next cut — in fact, chances are most of the songs here will get repeated more than once. It’s a lot like listening to an “unplugged” version of The Beatles (even re-creating The Beatles [White Album on this disc — just to cite one example — is as good as the released one, only brighter, and, if you will, bouncier, as the trio has unbridled fun with the lyric, the beat, and the rhymes without the need to pump up the wattage or the seriousness of it all; if the finished song is {John Lennon’s message to the world about politics, hate, and manipulation of the Beatles, this is his handwritten draft of that message, with all of his momentary digressions and mental edits left in. McCartney and Harrison’s songs are just as well represented, and the only thing missing is a contribution by Ringo Starr, who didn’t participate in these recordings. The curious element is that it’s the hard-rocking songs — &”Yer Blues” and &”Back in the USSR” — that come off the best, even though they’re the most different from the finished versions; the demo of &”Ob-La-Di, Ob-La-Da” is just as entertaining, as the trio plunges headfirst into reggae armed with just their guitars and some good intentions. As the notes point out, whatever stresses the group may have been experiencing as a formal entity, the three guitarists had some productive and harmonious sessions and they still sounded as cool, creative, and cutting edge as they ever did. As bonus cuts, the makers have added &”Helter Skelter” from a studio run-through, and thrown on &”Spiritual Regeneration,” the Beatles/Beach Boys ode to the Maharishi (which segues into the Beatles’ birthday greeting to Mike Love) and a somewhat less-entertaining, informal, acoustic medley of traditional songs, all tracks recorded in India. Bruce Eder, Rovi
0:00 Intro 0:15 Cry Baby Cry 2:42 Child of Nature 5:25 The Continuing Story of Bungalow Bill 8:15 I’m So Tired 11:24 Yer Blues 15:00 Everybody’s Got Something to Hide Except Me and My Monkey 18:00 What’s the New Mary Jane 20:39 Revolution 24:49 While My Guitar Gently Weeps 27:29 Circle 29:47 Sour Milk Sea 33:22 Not Guilty 36:36 Piggies 38:42 Julia 42:47 Blackbird 45:02 Rocky Raccoon 47:49 Back in the U.S.S.R 50:50 Honey Pie 52:54 Mother Nature’s Son 55:09 Ob-La-Di, Ob-La-Da 58:08 Junk 1:00:46 Dear Prudence 1:05:27 Sexy Sadie 1:07:52 Spiritual Regeneration 1:10:22 Spiritual Christmas
Sir John Eliot Gardiner conducts the Monteverdi Choir and the English Baroque Soloists in a performance of Bach’s Christmas Oratorio BWV 248 to begin their year long Cantata Pilgrimage.
Ana Cristina Leonardo (Olhão, 1959) estudou Filosofia, faz traduções e revisões literárias e publicou um livro infantil chamado Joaninha, a Menina que não Queria Ser Gente (na GRADIVA, com ilustrações de Álvaro Rosendo). Trabalhou na Assírio & Alvim no tempo do Hermínio Monteiro e frequentou as áreas do jornalismo cultural, viagens e moda. Colabora semanalmente com o semanário Expresso onde publica crítica literária no caderno ACTUAL. Se só pudesse levar consigo um escritor para a tal ilha levava Tolstói apesar de não saber russo.
Patrícia Reis nasceu em Lisboa em 1970. Começou a sua carreira jornalística no semanário O Independente em 1988. Passou pela revista Sábdo, fez um estágio na revista norte-americana Time, trabalhou no Expresso, na Marie Claire, na Elle e nos projectos especiais do jornal Público. Fez produção para o programa televisivo “Sexualidades” (RTP) e para “Vida de Casal” (SIC). Começou a editar a revista Egoísta há 10 anos, em 2000. Desde 1997 que é sócia-gerente do atelier 004, um atelier especializado em contéudos e design no âmbito do qual produz projectos variados, de exposições a contéudos para sites ou eventos, além de livros, revistas, ferramentas corporativas. Tem cinco romances publicados (D. Quixote), quatro livros infanto-juvenis (Quidnov) que formam uma colecção que integra o Plano Nacional de Leitura, dois livros infantis cujas receitas revertem para a Fundação do Gil (Quidnov). Mantém diariamente o blogue vaocombate.blogs.sapo.pt. É casada e tem dois filhos rapazes.