Guerra na Ucrânia: a emoção não pode turvar a razão | Lourenço Pereira Coutinho | in Jornal Expresso

A emoção não pode turvar a forma como vemos os russos. É intolerável que se tome a parte pelo todo. A oligarquia que beneficiou e enriqueceu à custa de uma autocracia corrupta é uma coisa, outra, bem distinta, é a esmagadora maioria da população. (…) As notícias de bulling a comunidades russas, o afastamento de agentes de cultura, desportistas e profissionais de outras áreas, e a censura ao canal Russia TV, não podem ter lugar em sociedades humanistas.

Passados mais de dez dias da invasão russa, a prioridade continua a mesma: a guerra na Ucrânia tem de acabar já. A todo o momento morrem pessoas, tanto civis como militares;  cidades e infraestruturas são destruídas e mais e mais ucranianos deixam as suas casas com praticamente nada. É um cenário que acompanhamos ao minuto e que tem mobilizado apoios como antes não se viram em casos semelhantes.

Mas a emoção não pode turvar a forma como vemos os russos. É intolerável que se tome a parte pelo todo. A oligarquia que beneficiou e enriqueceu à custa de uma autocracia corrupta é uma coisa, outra, bem distinta, é a esmagadora maioria da população. Os russos também estão a sofrer, e muito, isto desde os soldados que combatem numa guerra que, provavelmente, não desejaram, até às pessoas de campos e cidades que têm a sua vida paralisada pelas sanções. As notícias de bulling a comunidades russas, o afastamento de agentes de cultura, desportistas e profissionais de outras áreas, e a censura ao canal Russia TV, não podem ter lugar em sociedades humanistas. Excetuando casos de incitamento ao ódio e à violência, a censura é sempre censurável, e a perseguição a pessoas com base na sua origem vai contra tudo o que são os nossos valores comuns.

A emoção também não pode turvar a forma como olhamos para os protagonistas desta guerra. Ao ordenar uma invasão desumana, Putin transformou-se para boa parte do mundo na nova besta de sete cabeças do apocalipse. Mas é preciso encará-lo para além desta visão impressionista. O que o motiva? Impedir que a Ucrânia integre a NATO? Iniciar um processo de enquadramento da Ucrânia e da Bielorrússia na Federação Russa, mantendo-as com um estatuto semi autónomo? O que quer verdadeiramente dizer com “desnazificar” a Ucrânia? Onde pensa parar? Na Finlândia? No Báltico? Como negociar com ele?

O autocrata do Kremlin é um mestre na dissimulação e no jogo de palavras. Só descodificando-as será possível traçar uma estratégia válida que permita obter um cessar fogo e sentar as partes à mesa. Por mais que isto repugne à opinião pública ocidental, e a menos que a Ucrânia capitule ou que os russos o afastem politicamente, o fim desta guerra passará sempre por negociações com o autocrata do Kremlin.

Putin vai por certo querer a garantia que não existirão novas sanções enquanto decorrer o processo negocial. Não se trata de recuar nas que já existem, mas antes de não as agravar enquanto decorrem conversações. Seria uma moeda de troca possível de apresentar em troca de um cessar fogo provisório. Obviamente, Zelensky não vai discutir com Putin o não agravamento das sanções decretadas pelo ocidente. Informalmente, esta pode pois ser uma das responsabilidade dos mediadores.  

A este propósito, apareceram por fim personalidades internacionais a oferecerem-se para a função. Não as que tinha identificado na semana passada como possíveis – o secretário geral da ONU; a China, ou as igrejas católica e ortodoxa – mas sim Naftali Bennett, primeiro ministro de Israel, e Recep Erdogan, presidente da Turquia. Emanuel Macron também tem procurado estabelecer pontes, mas não pode ser um mediador formal, isto porque França está claramente de um dos lados. Bennett e Erdogan são boas soluções numa primeira fase, pois ambos têm boas relações com Rússia e Ucrânia. Caso a situação evolua para conversações diretas entre Zelensky e Putin, imagino porém que o narcisismo megalómano do autocrata do Kremlin pretenda uma personalidade de maior peso à mesa das negociações. Esta nunca poderia ser Joe Biden, pois tal seria voltar a uma lógica de guerra fria, com os conflitos a serem resolvidos diretamente por acordo entre as superpotências. 

Do lado ucraniano, Zelensky tem sido a bandeira da heroica resistência ucraniana. Esta tem contado com um apoio sem precedentes – sanções, apoio humanitário, envio de armas – mas o ocidente não poder dar a Zelensky o que ele mais quer. Uma intervenção da NATO, ou mesmo uma “no fly zone”, significaria a internacionalização do conflito, o que teria consequências catastróficas. Felizmente, a maioria dos lideres ocidentais tem atuado com sensatez, afirmando peremptoriamente que aquelas são possibilidades que não se colocam.

Por sua vez, a NATO também tem responsabilidades no ponto a que se chegou, pois desde 2006 que anda a empurrar com a barriga a candidatura da Ucrânia. Tendo em conta o enquadramento geográfico e o histórico das relações com a Rússia, a melhor opção para a Ucrânia teria sido manter a neutralidade, isto com fortes garantias da sua não violação e conservando a sua força armada. Seria uma escolha tão livre e válida como qualquer outra.

Infelizmente, o rumo dos acontecimentos impede que esta opção possa ser agora encarada com o mesmo grau de sensatez. Uma última achega: achar que a opção pela neutralidade é a mais adequada aos interesses específicos de alguns países não significa ser contra a NATO. No meu caso, e pelo contrário, sou um firme defensor da Aliança Atlântica, a base da segurança na Europa desde 1945.

Acho porém que a avaliação dos interesses de cada país não pode estar prisioneira da História, mas não deve deixar de a ter em conta. Nem aos necessários equilíbrios entre estados. Também neste tema, seria bom que a emoção não turvasse a razão.

Retirado de : https://expresso.pt/opiniao/guerra-na-ucrania-a-emocao-nao-pode-turvar-a-razao/

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